quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Mais além


O que era aquilo? Onde eu estava? Mas o que...
Um clarão passou por meus olhos. A cabeça doeu. A mão foi à testa.
Sinto-me tonta como se o mundo estivesse girando ao meu redor.
Parei. Esfreguei os olhos e tentei focar algo a minha volta. Muito cedo ainda, a visão era fosca e muito luminosa. Pisquei diversas vezes. Mantive os olhos abertos até captar as imagens ao meu redor.
Estava na rua, disso eu sabia. Havia uma chuva fina que encharcava o meu corpo e grudavam as minhas roupas. Não me lembrava de tê-las vestido. Olhei para baixo e percebi que não usava nada mais do que uma camisola. Estava descalça.
Demorei a notar o lugar onde estava. Levei um susto.
Mas que lugar era aquele? Eu estava no meio da cidade e pessoas corriam a minha volta tentando se proteger da chuva que caia. Todos estava aflitos segurando seus casacos e tentando se esconder dentro das lojas.
Não sabia o que estava havendo, pois ninguém parecia me notar. Todos apenas passavam por mim. Precisava pedir ajuda, afinal como eu fui parar ali?
Uma senhora idosa estava caminhando com seus passinhos vagarosos. Fui atrás dela. Ela não parecia se importar com a chuva como os outros que ali estavam. Alcancei-a e toquei em seu ombro macio.
Iria perguntar se ela sabia o que estava havendo ou se sabia como eu havia chegado ali. E de repente eu escuto a voz da mulher. Era uma voz suave e rouca, mas o engraçado foi ela não ter se virado para falar, por isso não pude ver se os seus lábios se moviam.
Só sei que eu escutei:” não se preocupe minha filha, nós estamos indo para onde todos vão.”
A senhora continuou o seu caminho antes que pudesse impedi-la ou lhe fazer mais perguntas. Fiquei observando. Num instante todos a minha volta já estavam longe e eu sozinha.
Minha cabeça e meu corpo estavam anestesiados por causa do frio. A sensação era estranha e boa ao mesmo tempo, pois ao menos assim não havia dor. Faltava descobrir o que havia acontecido.
Comecei a me mover, as pernas estavam pesadas, era como se para andar eu tivesse que arrastar um caminhão junto. Olhei a minha volta e nenhuma alma boa para ajudar.
Foi ai que avistei um contorno em meio a chuva. Era alguém que trajava capa e um chapéu, ambos escuros. Estava com as costas apoiadas numa parede, uma das pernas escorando o corpo, braços cruzados, o topo da cabeça encostado na parede e o chapéu cobrindo o rosto.
Aproximei no meu ritmo lento. Não parecia ter me notado também. Engano meu. Ao chegar perto, ele retirou o chapéu do rosto, mas o colocou muito rápido, assim não pude ver a face por completo, apenas da ponta do nariz para baixo. Continuava com a cabeça abaixada e não olhava em minha direção. Talvez não tivesse mesmo me notado.
Acenei. Estava perto dele, mas não muito. Queria falar, pedir ajuda, informação, ou qualquer outra coisa. Porém, antes que eu pudesse dizer algo a figura se moveu e virou o rosto para mim.
Naquele momento eu gelei, sentia como se meu corpo estivesse sendo puxado ou algo do tipo. Tive medo. Queria sair dali. Era como se ele estivesse controlando cada parte de mim.
Quis gritar, a voz não saiu. Para minha surpresa acho que ele ouviu algo, pois sua voz soou em meus ouvidos. Era um som grave, marcante, nada que eu já houvesse escutado antes.
“Ainda terá um tempo, mas não muito. Não se acostume, pois farei a gentileza de deixa-la por enquanto. Reúna suas forças e saia daqui, vá em busca das suas respostas. Tente encontra-las se for capaz.”
Com uma risada ele desapareceu pela entrada do beco ao seu lado. Novamente me vi sozinha. Ele havia dito respostas. Será que eu cheguei a dizer aquilo alto? Por que ele e aquela velha foram os únicos que falaram comigo?
Eram tantas perguntas. Virei as costas e reiniciei a caminhada. As pernas parecia um pouco mais leves, mas as questões ainda atormentavam. Para começo de conversa eu não sabia como eu havia ido parar ali, outro ponto era o motivo para ter ido até aquele lugar e de onde eu havia saído. Porém a questão que mais me assombrava era: quem exatamente eu era?
Ótimo! Não sei nem quem eu sou, quanto mais de onde vim!
Estava literalmente perdida. E se eu fosse uma louca? Uma procurada perigosa? Talvez tivesse cometido crimes... mas quem saberia me responder?
Olhei para os lados, a chuva ainda não havia parado. A sorte era que a camisola não estava translucida apesar de estar colada. Não sabia nem se aquilo era uma camisola mesmo. Como eu podia me lembrar de coisas assim e me esquecer de quem eu era?
Avistei um lojinha, um homem que vinha correndo com um jornal sobre a cabeça entrou no lugar, aproveitei para segui-lo e adentrar o ambiente. Do lado de dentro, um balcão e amontoados de livros em todos os cantos. O homem passou a percorrer as estantes e verificar os livros, parecia concentrado no que fazia. Como antes, ninguém me notava. Não havia balconista. O sino da porta se moveu, nenhum som. Outra pessoa entrou. Um homem de jaqueta escura e boné. Estava molhado e água que escorria de suas roupas molhava o carpete do chão.
Olhei ao meu redor. A minha volta o carpete estava seco, o que era estranho já que eu estava tão encharcada quanto ele. Segui os rastros do chão e nenhum dos molhados indicavam as marcas dos meus pés. Assustei com um livro que caiu e virei em sua direção. Abaixei para pega-lo, mas minha mão deve ter deslizado sobre a capa. Quando fui tentar outra vez eu vi botas negras e levantei bem rápido.
“Ora, ora, parece que ainda não foi atrás de suas respostas. Vamos. Não tem o dia todo. Procure. Observe. Talvez precise de um choque de consciência.”
Estava paralisada no lugar. Como ele havia entrado ali? Ainda não havia visto o seu rosto e no momento em que avancei para puxar aquele maldito chapéu de cowboy ele se esquivou. Foi então que algo as minhas costas me fez ficar alerta. Vi os lábios do homem de boné se mexer, mas não podia ouvi-lo. Ele sacou uma arma e rendeu o homem do jornal e uma balconista que eu não sabia quando havia chegado.
Estava ali parada observando tudo. Ele não me via e eu estava tão próxima quanto os outros dois reféns. Daquela distância era impossível não ter me notado. Percebi uma reação precipitada da moça e um disparo, o homem do jornal cambaleou e o som do tiro não ecoou em meus ouvidos. De repente outro clarão. Uma dor me invadiu. Olhei para baixo e vi que estava sangrando. Será que eu havia levado aquele tiro?
Não. O homem do jornal estava caído no chão, ele havia sido acertado e não eu. Mas então por que eu estava sangrando? Toquei o ferimento e percebi que não podia senti-lo.
Olhei para frente e vi o cara de jaqueta sair correndo da loja. A mulher estava tremendo e correu para perto do homem caído. Depois de algum tempo eu notei que o rosto dele estava mudando e havia momentos em que ele parecia me ver, pois apertava bem os olhos como se pudesse me enxergar.
A moça correu e pegou o telefone. Mais uma vez eu apenas vi os lábios se moverem e nenhum som. Ela correu de novo para perto do homem. Foi então que notei um brilho. Uma luz às minhas costas. Olhei para o lado, percebi que a capa, bem como o chapéu estavam jogados. Virei rápido e notei a mesma figura de antes, mas agora podia ver seus olhos. Dois lindo olhos dourados, um homem envolto em luz e contornos que lembravam asas enegrecidas.
Senti algo estranho se mover em mim. Quis tocar o rosto dele, mas não pude. Ele apontou para o homem caído as minhas costas e fez gestos para me virar. Ainda não conseguia entender o motivo daquilo.
E sua voz soou em minha mente, mas agora era mais grave e parecia acompanhada por outras mil vozes. Ele disse:
“Veja. Agora, lembre-se!”
Como se um flash estivesse atravessado o meu cérebro eu senti o corpo pesar, senti a dor me invadir, mas pude finalmente abrir os olhos e quando o fiz, lembrei.
Aquele homem, o do jornal, estava morrendo e eu sabia porque, mas não podia acreditar. Corri até ele, tentei toca-lo.
“Ainda não pode toca-lo. Ele ainda não está morto.”
Lágrimas inundaram o meu rosto, senti uma angustia tão forte em mim, agora eu entendia o que precisava lembrar. Eu o conhecia, conhecia aquele homem e agora ele estava morrendo.
Pousei a mão a centímetros do rosto dele, mas meus dedos não chegavam em sua pele. Eu o amava, amava muito. Sabia que havíamos nos amado como pessoas e apesar de parecer tudo tão distante, o meu amor ainda era imenso. Ele estava de olhos fechados e eu chorava ajoelhada ao seu lado.
“Não pudemos evitar que isso ocorresse. Ele escolheu assim quando você deixou o seu corpo. E é por causa disso que eu não a levei embora assim que você atravessou. Ele a amou muito e foi esse amor que não a permitiu se afastar deste mundo. Mas se você estiver longe, ele poderá esquecer com o tempo.”
Minhas lágrimas caiam e meu peito doía ao lembrar da vida que havíamos tido juntos. De repente senti que o corpo dele estava se entregando. Não! Não podia! Ele tinha que viver! Não podia ser assim, então eu gritei, o som finalmente pode sair dos meus lábios e algo aconteceu.
Eu o vi abrir os olhos e foca-los diretamente em mim. Uma pequena lágrima escorreu. Ele havia me visto. Sorri de emoção. Meu amor pôde me ver. Eu te amo... reproduzi com os lábios e ele fez o mesmo. Ainda não podia tocá-lo, o que demonstrava que ele estava vivo.
Não queria que ele morresse, não podia. Eu o amava muito para vê-lo morto. Virei-me para o ser às minhas costas e o encarei. Implorei para que o deixasse viver. Ele acenou com a cabeça e pude ouvir sua voz celestial:
“Ele irá viver se assim o desejar, mas não poderá se lembrar de nada. Não temos permissão para deixá-los lembrar. Você também não poderá continuar aqui se quiser tê-lo vivo, pois assim ele poderá seguir em frente.”
Meus olhos estavam encharcados, mas meu amor era muito grande. Desejava que ele vivesse. Então escolhi.
Minutos depois, percebi os paramédicos entrarem no local e levarem o corpo dele para dentro da ambulância. Estava do lado de fora enquanto observava o carro se afastar com as luzes piscando e o barulho que as sirenes provavelmente estavam fazendo.
Viva meu amor, seja feliz.
Senti o leve toque dos dedos luminosos em meu ombro. Em meu corpo uma corrente de energia começou a atravessar e fui puxada pelo ser que me envolveu em seus braços enquanto minhas ultimas lágrimas caiam dos meus olhos.

 by Katarina

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