quinta-feira, 27 de março de 2014

Crush


 

Por que fui ouvir meu coração ?
E me deixei levar pela vontade de te abraçar,
Mal sabia que estava me condenando a uma prisão,
Da qual não existe forma de escapar;

Apenas me lançando um sorriso,
Você me deixa completamente perdido,
Me faz sentir que perdi o juízo;
Faz com que todo o resto perca o sentido,

Então tenho que encarar a verdade,
De que estou completamente a sua mercê,
Pois quando me pedem para pensar em felicidade,
A única coisa que consigo pensar é você.

By Talon

sexta-feira, 21 de março de 2014

Por entre as rosas



O raio de sol atravessou as frestas da janela, atingindo os olhinhos de garota que dormia. Ela torceu o rosto, fazendo uma careta devido à luz. Em seguida veio um longo bocejo. Tentou abrir os olhos, mas precisou esfregá-los com as mãos, antes de conseguir abri-los totalmente.
No segundo seguinte, pulou da cama, jogando o edredom para o lado; era como se sua preguiça matinal estivesse acabado em um segundo. Cambaleou até a janela e abriu com pressa. O sol brilhava suave no céu, parece ser um lindo dia, mas ela estava pouco interessada no quão bonito ou feio o clima poderia estar. Seus olhinhos correram pelo chão de grama e pela cerca de madeira branca. A cerca era formada de tabuas brancas enfileiradas. Rente à cerca, uma roseira de rosas vermelhas da sua mãe, e do outro lado, a casa de Jaqueline, sua vizinha.
Apertou os olhos em um ponto, entre as rosas e achou o que procurava: um envelope de carta de cor amarela estava preso por entre as frestas da cerca, em meio às rosas. Um largo sorriso cortou seu rosto de ponta a ponta. Correu para fora do quarto, ainda só de camisola; abriu a porta com rapidez e ainda mais rápida atravessou o corredor até a cozinha.
A cozinha estava impregnada com cheio de café e torradas; a mãe preparava a refeição da manhã.
- Bom dia mãe. – disse ela correndo para a porta da cozinha.
- Bom dia Miranda...
Mal pôde terminar a frase e a filha já estava do lado de fora, pisando na grama com pés descalços.
- Calce um chinelo menina! – gritou a mãe, mais pra si mesma do que pra filha.
Ela não ouvia. Para Miranda, a única coisa que sua mente conseguia pensar era naquela carta. Enfiou a mão por entre as rosas e puxou-a da fresta com delicadeza. No espaço do remetente havia um nome: Jaqueline.
Apertou a carta contra o peito, sorrindo de olhos fechados. Olhou mais uma vez para o envelope, confirmando o nome nele escrito. Sim, era mesmo dela.
Desde que tivera conhecido Jaqueline, as duas tornaram-se melhores amigas muito rapidamente. A vizinha tinha o costume de lhe enviar cartas e bilhetes pela cerca. Quase todas as manhãs, uma cartinha nova surgia. Eram vizinhas e estudavam na mesma escola. Entre elas não havia segredos, era como se dividissem a mesma alma:
13/03/2002
Querida Miri
Desde que nos conhecemos, penso em você todos os dias. É a melhor amiga que uma garota poderia querer ter. Ontem quando andamos de patins juntas na praça, foi muito divertido. Eu acho muito fofo o jeito que você patina, sabe, toda torta, quase caindo rsrsrsrsrs ^^
Quando vamos de novo? Eu quero te ensinar a patinar direito para que você não caia igual ontem! Eu achei que você tinha se machucado e fiquei assustada, meu coração quase pulou pra fora! Que bom que não foi nada serio, eu não sei se iria agüentar te ver chorando ou machucada...
Você sabe que eu amo seu sorriso, seu lindo sorriso é só meu, você sabe né?
Com amor, Jacky.


14/03/2002
Querida Jacky
Desculpe a demora para responder sua cartinha. Só pra constar, eu amei muito! Adorei também essa sua idéia de passar cartas pela fresta da cerca! Essa é a primeira que eu estou tentando mandar, então, não fique brava comigo se ela amassar ou ficar feia! Você já me mandou tantas até hoje e eu nunca respondi nenhuma, mas hoje isso vai mudar!
Eu sei que eu não andar de patins muito bem, mas com você me ensinando eu vou aprender bem rapidinho! Você segura minha mão e me puxa pra junto de você. Eu gostei muito, menos aquela hora que eu caí, quase caiu em cima de você! Que sorte que não me machuquei, que sorte minha que você tava lá comigo! Tenho sorte de ter você como amiga. Meu sorriso é só seu, se o seu for só meu.
Com amor, Miri.

16/03/2002
Oi Miri!
Você parecia meio tristinha hoje na saída da escola. O que aconteceu? Tirou alguma nota baixa? Por favor, me diga por que estava tão triste. Você sabe que pode me contar tudo que você quiser, não sabe? Somos as melhores amigas do mundo todo, não somos? Eu não confio em ninguém a não ser você. No recreio quando saímos para lanchar juntas foi muito legal, espero que possamos fazer isso todos os dias! Podemos até trocar lanche se você quiser.

Por favor me responda tá?
Sua Jacky.

17/03/2002
Oi Jacky.
Não é nada serio não, quer dizer, não muito. Sabe a Giovana da minha sala? Nós brigamos hoje. Foi bobagem, e eu acho que eu tava meio errada, sei lá. A professora nos colocou juntas para um trabalho. Eu queria pintar os mapas de verde e vermelho, mas ela não quis. Foi bobo sabe? Mas eu não quis dar o braço a torcer e aí acabamos discutindo... Ela me chamou de gorda, e ai eu fiquei triste, mas foi só isso, não precisa se preocupar ta? Eu tava triste mas quando vi sua cartinha por entre as rosas, eu dei um sorrisão tão grande que toda minha tristeza foi embora.
Lógico que podemos lanchar juntas todos os dias! É o que eu quero. Só não sei sobre trocar de lanche, eu gosto do lanche da minha mãe. Rsrsrsrs
Com amor
Miri.

19/03/2002
Oi Miri, tudo bem?
Eu soube que a Giovana se machucou hoje na aula de educação física. Ouvi as meninas dizendo que ela caiu e machucou a boca no chão. Não sei quanto a você, mas eu não senti nada quando me disseram, sabe? Quer dizer, bem feito pra ela! Ninguém gosta dela mesmo, e alem do mais, ela te xingou, e isso faz eu gostar ainda menos dela. Quem sabe agora ela não aprender a ficar de boca fechadinha quando pensar em xingar alguém, né? Vamos tomar um sorvete no shopping amanha? Eu pago desta vez certo? O próximo é por sua conta!

Com muito carinho, Jacky.



21/03/2002
Querida Jacky
Eu queria agradecer o sorvete que você me deu. Eu sei que já fiz isso pessoalmente, mas acho importante falar por carta, por que assim, fica escrito e você pode ler sempre que quiser. Eu leio suas cartas o tempo todo sabia? Eu as guardo em um baú embaixo da minha cama. Guardo em um baú por que pra mim é um grande tesouro muito lindo e valioso. Você guarda as minhas cartinhas também? Espero que sim viu? Se não, eu paro de sorrir pra você ta?
Sabe Jacky, me disseram hoje uma coisa que eu não gostei. Disseram que você empurrou a Giovana na Educação física. É verdade? Eu não gosto da Giovana, mas não queria que ela se machucasse assim.

Pensando em você.
Miri.

22/03/2002
Miranda.
Que absurdo é esse? Como você duvida de mim? Você me conhece e sabe que eu não faria algo assim. Não gostei não ta? Não sei quem te falou isso, mas com certeza foi alguém que tem inveja de nós duas. Não acredite!
Jaqueline.

22/03/2002
Oi Jacky...
Puxa vida, fala comigo! Eu te dei um oi hoje e você não respondeu. Fui te procurar para lanchar e não te achei. Por favor, não fica brava comigo, eu sei que você não fez aquilo. Me desculpe ferir seus sentimentos, você sabe que eu te amo. Me desculpa.
Com amor, Miri.

28/03/2002
Olá Miri.
Já faz uns dias que não trocamos cartas. Eu fui muito rude com você. Me desculpe ter feito você chorar, por favor. Eu também chorei muito, eu não podia acreditar quando você me perguntou se era verdade que eu tinha mesmo feito aquilo. Eu estava brava, mas te ver me olhando todos os dias na escola, acenando pra mim... Cortou meu coração. Eu tentei Miri. Tentei ficar brava com você e tentei não pensar mais em você.
Eu te perdôo, se você me perdoar também.
Eu te amo.
Jacky.

29/03/2002
Querida Jacky.
Sua carta de ontem me deixou sem fala. Eu achei que você me odiava e que não queria mais me ver, mas eu tava enganada! Você também sofreu né? Eu juro Jacky. Eu juro que não vou deixar ninguém me enganar com mentiras. Elas são todas invejosas porque nós temos umas as outras e elas só tem amigas falsas!
Hoje quando você me abraçou na escola, eu chorei tanto em você que molhei sua roupa com minha lagrimas. Todo mundo olhou estranho pra gente, rsrsrsrsrs.
Sabe Jacky, eu não ligo pra isso, eu não ligo pra nenhum deles. Eu gosto de você e eu quero ficar sempre com você.
Juntas pra sempre
Miri.

02/04/2002
Bom dia Miri.
Eu queria falar algo com você, mas acho mais fácil falar por carta, já que este é nosso meio especial de conversar. Quem é aquele menino de cabelo loiro que tava falando com você ontem na saída da aula? O que ele queria com você? É amiga dele? E por que você sorriu pra ele? Seus sorrisos são só meus e os meus só seus.
Triste,
Jacky.

03/04/2002
Bom dia Jacky.
Fica calma, por favor! Ele se chama Raphael, é só um amigo que me fez um favor. Eu esqueci o livro de Geografia em cima da minha mesinha e ele me emprestou o dele, só isso. Eu usei o livro dele e ele dividiu um livro com o amigo dele, simples. Eu tava agradecendo ele depois. Eu não sorri pra ele como sorrio pra você, aquele foi só um sorriso de agradecimento. Jacky, você tem muito mais do que meu sorriso, você tem meu coração. Não precisa ter ciúmes assim.
Não fique triste. Te amo.
Miri.

04/04/2002
Olá Miranda.
Fico triste sim. Eu não esperava ver aquilo. Eu não sorrio pra ninguém, não dependo de ninguém. Eu não quebro minha promessa de não sorrir pra mais ninguém.
Talvez esteja na hora de você ver se realmente me ama, Miranda. Amor não é algo só da boca pra fora. Eu só volto a confiar em você, quando suas palavras condisserem com seus atos.
Pense nisso.
Jaqueline.

05/04/2002
Querida Jacky.
Porque faz isso comigo? Assim você parte meu coração em milhões de pedaços! Estou tremendo e chorando agora, escrevendo essa carta. Não seja assim, por favor. Eu me afastei do Raphael, eu não falo mais com ele. Eu juro. Sinto saudades.
Sua Miri.

08/04/2002
Jacky
Fala comigo, por favor! Eu não te reconheço mais. Você costumava ser carinhosa mas agora parece uma roseira: linda mas cheia de espinhos. Acordo todos os dias e vou olhar para a fresta da cerca, mas não encontro nada por entre as rosas. Será que você está lendo minhas cartas?
Sinto saudades
Miri.


11/04/2002
Querida Jacky.
Você faltou hoje de novo... Faz tempo que não sei nada de você. Por favor, apareça, fale comigo! Você continua pegando minhas cartas? Ou é alguém mais que ta pegando elas?
Te amo. Miri.


20/04/2002
Miranda...
Eu vi Miranda. Então é assim que você me “ama”? Eu te vi brincando com um cachorrinho hoje na praça. Parece que já me esqueceu bem rápido hein? Sou menos que um cachorro pra você. É isso? Cada vez que você o abraçava e sorria pra ele, eu imaginava minhas unhas rasgando a pele dele. Eu odeio esse cachorro. Livre-se dele Miranda!
Jaqueline.

21/04/2002
Jacky...
Quando vi sua carta no meio das rosas essa manhã, eu quase não acreditei. Eu to chorando tanto ultimamente que quase não tenho mais forças pra nada. Eu tava tão sozinha, você some e não diz pra onde vai nem o que aconteceu. Minha mãe me deu um cachorrinho sim, o nome dele é Nico. Por favor Jacky, não odeie o Nico, ele é nosso. Vamos cuidar dele juntas. Vai ser só eu, você e o Nico, e mais NINGUEM na nossa vida.
Miri

22/04/2002
Miranda
Você fez a sua escolha então. Prefere me “dividir” com esse saco de pulgas asqueroso, então ta tudo bem! Sabe, eu bem que podia me atirar na frente de um carro e ser atropelada, quem sabe assim você se arrependeria do mal que você me faz! Você não tem o direito de bagunçar minha vida desse jeito Miranda, não tem! Você não sabe quem eu sou, de onde vim e do que sou capaz! Aguente as consequências agora.
Jaqueline.

23/04/2002
Jaqueline.
EU to te fazendo mal? Eu quase desmaio todos os dias de tanto chorar por sua causa e você me diz isso? Me ameaça e ainda diz que vai se jogar na frente de um carro pra eu me arrepender? Eu não desisti de amar você, mas você foi longe demais agora! Eu amo o Nico e amo você. Posso amar os dois. Posso sorrir para os dois. Não somos mais tão pequenas assim ta? Não precisa agir feito criancinha pra ganhar atenção! E mais outra. Só fale comigo agora se for pra pedir desculpas. Eu te amo e posso te dar outra chance.
Miranda.


Naquela noite, Miranda foi dormir com Nico embaixo da cama, como sempre. A diferença era que desta vez ela não estava chorando; estava com raiva. Jacky tivera passados dos limites e precisava se desculpar.
Fechou os olhos, rolou na cama e tentou ignorar a raiva para dormir logo. Teve um sonho horrível: sonhou que Jacky tinha pele vermelha, chifres e dentes pontudos na boca, como um demônio. No sonho, Jacky estava com os olhos injetados de sangue e dizia que ela iria se arrepender, que não deveria sorrir pra mais ninguém.
Acordou. Já estava quase amanhecendo. O sonho fora terrível, mas agora já havia acabado. Levantou-se, vestiu os chinelos e caminhou ate a porta.
Parou no meio do caminho, deu meia volta e encarou a janela fechada. Foi até ela e a abriu, sem muitas esperanças. Mas para sua surpresa, estava enganada. Por entre as rosas, um envelope amarelo.
Não sabia dizer se aquilo era bom ou ruim, mas resolveu ir ate lá assim mesmo. Era muito cedo, sua mãe ainda dormia. Miri andou ate o lado de fora e esticou a mão pela roseira e pegou a carta. Abriu-a.
Cuidado onde pisa.
Apenas isso.
De inicio ela não entendeu muito, mas então, decidiu olhar para baixo. O chão onde pisava era de barro e parecia que havia algo enterrado bem onde pisava. O desespero tomou conta da garota; largou a carta, caiu de joelhos e começou a cavar a terra úmida com as mãos. Seu coração estava acelerado e lágrimas começaram escorrer de seus olhos.
Seu corpo todo travou ao encontrar um saco de pano no buraco. Um saco de pano manchado de sangue. Com as mãos sujas e trêmulas, ela abriu o saco...
Era Nico. Estava cheio de cortes por toda parte e com uma enorme ferida na cabeça, parecia que tivera sido surrado ate a morte com uma garrafa. Miri sentiu as entranhas serem corroídas pela dor de ver seu cachorrinho daquela forma; como se fosse um pedaço de carne no açougue.
A pressão subiu. Tudo ficou escuro. Suas pernas perderam a força e ela desmaiou...

26/04/2002
Querida Jacky.
Eu voltei para casa hoje. Os médicos disseram que foi apenas um choque, e que anda grave me aconteceu. Eu não contei a verdade para ninguém. Juro. A policia diz que Nico deve ter sido morto por vândalos e arruaceiros e estão fingindo estar interessados em investigar quem realmente o matou. Eu juro que em momento algum eu mencionei o seu nome. Você está certa sobre mim Jacky, eu errei, eu não tive maturidade o bastante para levar nossa relação mais a sério. Eu peço que me perdoe, eu nunca mais vou te ferir, por que eu te amo, certo? E você me ama, certo? Eu não preciso de mais ninguém enquanto eu tiver você. Por entre as rosas, eu entrego meu pedido de perdão.
Eu só preciso do seu amor Jacky. Nunca mais vou te contrariar, prometo.
Juntas pra sempre.
Miri.


domingo, 16 de março de 2014

Imortal



Duas da manhã.
Droga!
Ainda não posso parar. Tenho que terminar....Tenho!!!
Com os pensamentos voltados para sua mais recente aventura, Carlos não se importava com os ponteiros do relógio que teimavam em percorrer aquela mesma monótona circunferência de sempre.
As ideias surgiam em sua mente como folhas e mais folhas de um roteiro pronto esperando para ser lido. A criatividade no auge, tudo para que aquela fosse sua obra prima, seu momento máster de uma carreira que até hoje não havia ultrapassado a condição transcendental esperada por muitos que a seguiam.
A história, cujas letras eram marteladas num teclado, era inspirada naquilo que mais impulsionava Carlos a escrever. E todas as noites ele dedicava seu tempo para aquela exaustiva, mas compensatória atividade.
Seus dedos eram como máquinas e a mente estava a mil. Tudo o que ele sentia era o som que as palavras produziam dentro de si como se fossem parte de seu próprio organismo. Eram vivas as ideias que se projetavam de sua cabeça e quase palpáveis.
E assim, aquela dança com as palavras e ideias se prolongou até que a noite se fez dia e o dia se fez noite novamente. Não sabia exatamente que horas eram, mas quem se importava com aquilo? Não se lembrava do dia, do sono, do banho, da comida, não se lembrava de nada, a não ser de suas preciosas palavras.
E cada vez que se levantava para fazer algo ou comer alguma coisa, ele se lembrava de seu livro. Não queria abandona-lo, não tinha forças para deixa-lo, era incapaz de se sentir bem estando longe das linhas que continham as marcas de seus pensamentos.
A cada parágrafo novo o colapso lhe vinha a mente.... Se eu o deixar agora....não!! Sem intervalos, sem pausas!!!
Os dedos anestesiados tornaram-se partes involuntárias dele mesmo. Não tinha sono, não tinha fome, não tinha nada. Nada, a não ser sua ideia e sua inspiração. Inspiração forte que o dominava por completo.
E a força ou a inspiração que o fazia sempre persistir vinha de outra pessoa. Vinha de alguém com quem Carlos desejava passar todos os dias, todos os momentos e cada segundo. Essa força que lhe concedia capacidades quase sobre-humanas estava impregnada no ambiente em que Carlos escrevia. Cada parede, cada canto, em cima dos móveis, em cada lugar. Lá estava. Era notável até mesmo para mim que não costumo reparar muito e apenas faço o que tenho que fazer.
Mas para Carlos eu abri uma exceção, um desvio da minha conduta imparcial e inquestionável. E a primeira “coisa” que percebi ao encontrar Carlos foi a extensão da sua inspiração, o tamanho irrevogável da sua vontade. E todas as imagens, fotografias, recorte, textos, pinturas, absolutamente tudo reportava o mesmo rosto, o mesmo traço, a mesma descrição. A bela jovem, inspiração para Carlos.
Sua bela obsessão que se transformou em palavras enquanto seu corpo definhava por cansaço.
E agora que observo mais atentamente a tela do monitor, percebo que Carlos realmente está no fim de sua obra. Uma belíssima história totalmente dedicada para seu amor.
O ponteiro dá mais uma volta e para.
Acabou a bateria, ele não percebeu.
Olho para o lado e noto outro rosto. A familiar garota das fotos está ali. Sorriso espectral.
No monitor vejo Carlos digitar sua última frase e uma dedicatória incrível. Não consigo esconder uma pontada de “sentimento” quando vejo que também fui mencionada em seu livro.
Olho novamente. Já esperei tempo demais e não posso atrasar. Já é hora, Carlos. Penso comigo mesma.
Caminho lentamente por detrás dele. E pela primeira vez em muito tempo sei que fui também a responsável pelo cumprimento de algo, no caso, aquelas palavras que se tornaram parte de um livro. Sou também a causa da inspiração, mas isso não me engradece de forma alguma.
Em minhas mãos sinto o peso que cada ser carrega e traz para mim.
Trabalho terminado. Apago as luzes antes de sair.
O som do teclado não é mais audível. A luz do monitor está acesa e as palavras refletidas permanecerão fixas.
Os ponteiros imóveis agora marcam duas da manhã.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Cem anos de perdão



Quem nunca roubou nada, não consegue me entender. Eu roubo coisas. Coisas que não são minhas, eu roubo. Roubo o que não tenho e gostaria de ter... Não é assim que funciona? Comigo não seria diferente, sou um ladrão.
O que eu roubo é algo especial, pelo menos pra mim. Eu tenho um ajudante de crime; alguém que fica vigiando, cuidando para que ninguém atrapalhe. No começo eu fazia sozinho e fazia em um lugar diferente. Era bem ao público mesmo; eu me sentava em um banco desses de praça e ficava olhando mães carregando carrinhos de bebês, pais comprando sorvete para os filhos, mas isso acabou enchendo o saco; eu queria algo melhor.
Foi então que, em uma das minhas caminhadas eu encontrei o lugar ideal: um cemitério. Cemitérios são lugares onde muita saudade é deixada. Um lugar cheio de lembranças boas, mas às vezes, dolorosas. Ter saudades daqueles que você amou e perdeu é melhor do que não ter ninguém pra ter saudades, não é? Eu sempre pensei que sim.
É aqui que entra meu ajudante; o coveiro. Eu dou pra ela um litro de cachaça barata toda semana e ele me deixa entrar de madrugada. Quando eu chego, ele abre o portão com cuidado e fica por lá um tempo, cuidando se ninguém se aproxima. Ele fica me dando cobertura, por um litro de pinga, mas eu não posso criticá-lo: aposto que ele pensa o mesmo de mim.
Deixo-o para trás, procurando por alguma lápide, pensando no que eu gostaria de roubar hoje. Não tenho memórias de um pai, nunca tive um. Eu quero um. Aproximo-me de um túmulo com um nome de homem, um homem que pelas datas gravadas na lápide, teria idade para ser meu pai. Encaro a lápide com olhos duros e penetrantes. Fico imaginando que tipo de pai ele foi: será que foi amado como deveria? Ou será que era do tipo que bebia muito e batia nos filhos? Muita gente sente falta dele? Eu espero que sim... Ser esquecido, isso sim, é morrer. Olhando seu túmulo, eu fico pensando se ele me amaria, e se cuidaria bem de mim; se me compraria sorvete, ou me levaria para assistir futebol com ele. Encosto a mão na lápide e solto um longo suspiro. Não é meu.
O pouco que me lembro da minha mãe, prefiro não lembra; não vale como lembrança para se ter de mãe. Sempre me disseram que mãe só tem uma e eu levo isso muito a serio. Eu roubo muitos pais, tios e primos por aqui, mas mãe, só tem uma que eu gosto de roubar pra mim. Ah sim, tem outra coisa que eu roubo: flores. Eu pego flores de outros túmulos para levar para a Dona Cidinha. Dona Cidinha é a mãe que eu roubei. O filho dela é um idiota que não dá valor para a mãe que tinha, mas eu dou, por isso, agora ela é minha. Deixo flores para ela e até converso. Criei na minha mente, uma personalidade pra ela, e até um tom de voz especifico, quando a imagino falando.
Sempre que venho ver minha mãe, lembro das palavras da minha velha amiga Clarice: “Ladrões de rosas e de pitangas tem cem anos de perdão.” Deixo as pitangas para a Clarice, mas fico com as rosas (que nem sempre são rosas, mas não tem problema, a mamãe gosta de todo tipo de flores), acreditando que meu crime merece cem anos de perdão. Roubei a mãe de alguém e toda noite, roubos pais, tios e primos. Só roubo o que preciso, sem me exceder. Mas às vezes eu pergunto pra mamãe se eu poderia ter um irmão ou irmã...
Enquanto eu fico aqui, falando com a mamãe, o coveiro fica lá enchendo a cara, vigiando o portão e (muito provavelmente) rindo de mim. Bom saber que eu o deixo feliz.
Ninguém nunca soube; ladrão de mãe merece o mesmo perdão que ladrão de pitangas. Se as velhinhas mortas pudessem falar, pediriam para que alguém as roubasse, como eu fiz com a Dona Cidinha. Mamãe.


domingo, 2 de março de 2014

Kaledrina - segunda parte


Primeira parte

No dia seguinte eu transferi minha pesquisa para esta sala; as peças do flame pack assim como todas as ferramentas e aparelhos que iria precisar, eu não queria sair de perto dela. Descobri que eu podia abrir os olhos dela e deixá-los abertos; eram azuis e lindos, lhe caiam bem. Espanei todo o pó do lugar para deixando-o mais de acordo com uma dama e até cobri parte do chão com um tapete azul que encontrei nos fundos da minha casa. Eu estava feliz. Minha pesquisa fluía, eu trabalhava com muita empolgação agora, mas meus motivos eram diferentes... Eu não estava interessado em chamar a atenção do meu, eu apenas queria estar ali. No entanto, as vezes enquanto eu trabalhava, eu tinha a impressão de que Kale estava olhando na minha direção, mas sempre que eu a olhava, seu rosto estava onde eu tinha deixado, na posição que eu a deixava: sentada com as pernas juntas e mãos nos joelhos.
Um dia, eu trouxe uma vitrola e uns discos da Peggy Lee para ouvir com ela. “Espero que goste do som da Peggy, Kale, ela sempre me inspira” Sim, eu a tratava como uma pessoa de verdade. Eu sabia que isso não era normal; conversava com ela normalmente, sabendo que ela não responderia, mas na minha mente, eu imaginava as respostas dela e às vezes, eu até ria sozinho disso tudo. Tinha dado a ela status de ser humano, pior: eu não tinha vontade de interagir com ninguém mais a não ser ela.
Liguei a vitrola com o disco da Peggy.
“Sabe, eu sou um péssimo dançarino, mas mesmo assim, concede-me esta dança?” Eu sempre quis fazer essa pergunta, mas sempre fui rejeitado antes de ter a chance de terminá-la. Kaledrina não em rejeitou. Ela continuou com seu olhar estático e sorriso misterioso. Ela não disse não, não se afastou e não atirou bebida no meu rosto.
Tomei minha garota nos braços e brinquei de dançar com ela. Suas pernas não eram firmes no chão, o que deixava a cena ainda mais patética. Quer dizer, para qualquer um que visse, seria patética, mas não para mim: eu tropeçava nos pés moles dela, mas não tirava os olhos dos seus.
Tropecei. Caímos no tapete, Cai sobre ela. “ Ái! Desculpa amor!” Silenciei-me. Eu tinha mesmo chamado ela de amor? As coisas estavam indo longe demais. Ela era uma boneca, só isso, e não uma pessoa. Ela não era capaz de me retribuir. Nunca seria. Não parava de pensar nisso, mas também, não saia de cima dela. Meu nariz estava próximo ao dela, os cabelos, espalhados no chão e a boca semi-aberta; parecia que estava esperando que eu dissesse algo, ou fizesse algo.
“Você é linda, Kale”. Eu a amava. A amava e me odiava por amá-la. Não era certo. Lágrimas escorriam dos meus olhos, pensamentos de amor por ela e ódio por mim, me bombardeavam furiosamente. Foi quando, eu senti mão dela sobre a minha. Engraçado, eu não tinha notado que ela caiu com a mão encima da minha até aquele momento. Seu olhar sereno em mim e sua mão me consolando... Senti-me acolhido e protegido. Amado. Em minha mente, ela me dizia “você sabe que não precisa ser forte comigo”. Encostei a cabeça em seus seios e a abracei. Naquele momento, tudo que queria era ficar ali, ouvido a Peggy e abraçado à Kaledrina, e que o mundo fosse para o inferno. Adormeci.
Na manhã seguinte, acordei recebendo chutes e ouvido a risada irritante de Manfred. “ Uther! Acorda Uther! O que é isso seu panaca?” gritou ele. Xinguei-o e o mandei sair da minha sala, mas Manfred não é do tipo que faz o que outros lhe pedem. “Mas que merda é essa ai no chão? Sou namorada? Só assim para você dormir com uma mulher, se ela for uma porra de uma boneca”. Com muito ódio, levantei e fui para cima dele, mas infelizmente, meu irmão é mais forte que eu, sempre foi. E sabia brigar muito bem. Ele em acertou alguns socos no rosto e me mandou pro chão. Riu, me chamou e imprestável, o de sempre.
Não bastando, Manfred ergueu o vestido de Kale, zombando de mim. Ele retirou a calcinha dela e jogou sobre mim. “ Olha só Uther! Ela tem xaninha, você sabia? Ou será que nem da boneca você consegue arrancar a calcinha?” Ele abriu as pernas dela, numa posição humilhante e enfiou os dedos dentro dela. “Apertadinha!”
Nunca senti tanto ódio por alguém na minha vida. Eu queimava de raiva, queria muito que Manfred morresse. Gritei, fazendo força para ficar de pé. “Eu vou te matar!” ameacei. Ele não gostou; ninguém o ameaça. Largou Kale e veio até mim. Me agarrou pelo colarinho e voltou a me bater, com muita raiva. Quando sua mão começou a doer, ele me largou. “Isso não fica assim Uther. Vamos ver o que vai ser da sua boneca. Vou me certificar de que ela vire sucata rapidinho, ou ainda melhor, que vire brinquedinho de mendigo, afinal, mendigos também precisam de amor!”
Saiu da sala rindo. Estava tudo acabado. Manfred iria conseguir o que queria, ele sempre consegue. Eu perderia Kale. Coberto de sangue, me arrastei ate ela; estava caída de pernas abertas. Seu rostinho estava virado para minha direção. Segurei a mãozinha dela, implorando perdão por deixar isso acontecer. Estava muito ferido, mas precisava mudá-la de lugar até pensar em algo. Retirei o jaleco sujo de sangue e a joguei nas minhas costas, passando seus braços pelo meu pescoço. Ela era mais pesada do que parecia e o fato de eu estar surrado não ajudava; minhas pernas tremiam com o esforço.
Por um milagre, eu a levei até a enfermaria; tinha uma salinha lá, uma sala de tranqueiras que era pouco usada, seria um bom lugar temporário para ela. Coloquei-a lá dentro e fechei a portinha. Estava exausto e muito machucado. Cai na cama ali da enfermaria mesmo e dormi...
Acordei muito tempo depois, com a voz de um homem me chamando. Era um dos assistentes do meu pai. “Senhor Uther, venho trazendo péssimas noticiais. Seu irmão Manfred sofreu um acidente, senhor.” Um acidente? O homem continuou: “ Ele caiu da escadaria do prédio, quebrou o pescoço e... bem, ele morreu,senhor.”
Manfred escorregou e morreu? Arregalei os olhos surpreso. Foi então que reparei que meu rosto estava todo cheio de curativos, cuidadosamente aplicados. O assistente pediu licença e me deixou. Sentei na cama. Meu irmão estava morto, convenientemente morto, quando eu mais precisava que ele ficasse quieto. E minhas feridas... Num movimento rápido, abri a portinha secreta para procurar por Kale. Eu não esperava vê-la, mas, lá estava ela... Do jeito que eu a deixei.
Cuidadosamente, eu a levei novamente para a antiga sala, sobre a cadeira que ele sempre ficava. Quando eu estava ajeitando-a para sair, notei algo que me fez arrepiar de medo: a ponta dos dedos dela estavam sujos de sangue. Levei as mãos à meus curativos e mais uma vez olhei seus dedos. Não podia ser verdade.
Cobri-a com o pano preto e apaguei as luzes. Manfred foi cremado aquela noite mesmo. Meu pai não parava de amaldiçoar o céu e a terra pela perda do filho favorito, nem reparou que eu estava ali todo machucado. Naquela noite fui deitar me sentindo péssimo. Eu desejei a morte do meu irmão e ele de fato, morreu no mesmo dia. Mas como ele poderia ter caído da escada? Não é bem o estilo dele. O segurança disse ter visto alguém a mais no andar uns minutos antes. Ele descreveu como uma pessoa esguia que se movia muito rapidamente. Essa pessoa poderia ter empurrado Manfred.
Uma pessoa esguia com movimentos delicados. Tão delicados a ponto de fazer curativos no rosto de uma pessoa adormecida em acordá-la? Levantei da cama. Sai de casa correndo, precisava ir ate o laboratório, precisava ver ela.
Quando cheguei, estava quase morto de tanto correr. Estava também com medo; se ela fosse uma assassina, ela poderia querer me matar agora que sei dela? Descendo as escadas, apanhei um machado de incêndio no caminho...

E agora estou aqui; sobre seu corpo, olhando-a, decidindo se a destruo ou não. E se ela for uma assassina? E se eu estiver criando um monstro? Eu não posso arriscar a vida de outros por um egoísmo meu! Mas eu a amo. Ela não é real, mas a amo. Ela não precisa ser real para ser ideal.
- Kale... me perdoe, meu amor.
Fecho os olhos e levanto o machado. Em um golpe tudo estaria acabado. Picaria o corpo dela e a queimaria com o flame pack e ela nunca mais precisaria machucar ninguém.
Faço força com o machado, mas meu braço não se mexe. Abro os olhos e a vejo com a mão erguida, segurando o cabo do machado. Seus olhos estão olhando-me, mas não com aquela expressão perdida de sempre.
- Meu nome é Kaledrina – ela diz – E eu te amo muito!
Abro a boca assustado. Isso era mesmo real? Estava acontecendo? Tento tirar o machado da mão dela, mas ela me segura com muita força.
Puxa o machado da minha mão e o atira no canto da sala. Afasto-me dela, com medo. Ela levanta-se, ficando sentada, dura como um robô. Seu rosto volta-se para mim. Ela pisca e sorri.
Com a mão direita ela começa a desabotoar o vestido dela.
- Ka-Kale? – estou incrédulo demais, se não fosse a dor no meu coração de tanto correr, eu acharia que estava sonhando.
Kaledrina ergue a mão esquerda, como se estivesse me chamando. Parecia feliz, parecia calma e pacifica... Eu quero muito ir até ela.
Foda-se! Engatinho até ela e seguro sua mão. Ela puxa-me gentilmente para cima dela, me fazendo deitar sobre seu corpo. Leva minha mão até seus seios, por entre os botões abertos. A beijo.
- Eu vou te proteger. Se você for mesmo uma assassina, azar dos outros. Ninguém me tira de você!
Ela abre a boca e solta um gemido curto. Um gemido de prazer. Sua boca de borracha sorri mais uma vez e eu torno a beijá-la.
Minha Kaledrina.


by Kennen