quarta-feira, 12 de março de 2014

Cem anos de perdão



Quem nunca roubou nada, não consegue me entender. Eu roubo coisas. Coisas que não são minhas, eu roubo. Roubo o que não tenho e gostaria de ter... Não é assim que funciona? Comigo não seria diferente, sou um ladrão.
O que eu roubo é algo especial, pelo menos pra mim. Eu tenho um ajudante de crime; alguém que fica vigiando, cuidando para que ninguém atrapalhe. No começo eu fazia sozinho e fazia em um lugar diferente. Era bem ao público mesmo; eu me sentava em um banco desses de praça e ficava olhando mães carregando carrinhos de bebês, pais comprando sorvete para os filhos, mas isso acabou enchendo o saco; eu queria algo melhor.
Foi então que, em uma das minhas caminhadas eu encontrei o lugar ideal: um cemitério. Cemitérios são lugares onde muita saudade é deixada. Um lugar cheio de lembranças boas, mas às vezes, dolorosas. Ter saudades daqueles que você amou e perdeu é melhor do que não ter ninguém pra ter saudades, não é? Eu sempre pensei que sim.
É aqui que entra meu ajudante; o coveiro. Eu dou pra ela um litro de cachaça barata toda semana e ele me deixa entrar de madrugada. Quando eu chego, ele abre o portão com cuidado e fica por lá um tempo, cuidando se ninguém se aproxima. Ele fica me dando cobertura, por um litro de pinga, mas eu não posso criticá-lo: aposto que ele pensa o mesmo de mim.
Deixo-o para trás, procurando por alguma lápide, pensando no que eu gostaria de roubar hoje. Não tenho memórias de um pai, nunca tive um. Eu quero um. Aproximo-me de um túmulo com um nome de homem, um homem que pelas datas gravadas na lápide, teria idade para ser meu pai. Encaro a lápide com olhos duros e penetrantes. Fico imaginando que tipo de pai ele foi: será que foi amado como deveria? Ou será que era do tipo que bebia muito e batia nos filhos? Muita gente sente falta dele? Eu espero que sim... Ser esquecido, isso sim, é morrer. Olhando seu túmulo, eu fico pensando se ele me amaria, e se cuidaria bem de mim; se me compraria sorvete, ou me levaria para assistir futebol com ele. Encosto a mão na lápide e solto um longo suspiro. Não é meu.
O pouco que me lembro da minha mãe, prefiro não lembra; não vale como lembrança para se ter de mãe. Sempre me disseram que mãe só tem uma e eu levo isso muito a serio. Eu roubo muitos pais, tios e primos por aqui, mas mãe, só tem uma que eu gosto de roubar pra mim. Ah sim, tem outra coisa que eu roubo: flores. Eu pego flores de outros túmulos para levar para a Dona Cidinha. Dona Cidinha é a mãe que eu roubei. O filho dela é um idiota que não dá valor para a mãe que tinha, mas eu dou, por isso, agora ela é minha. Deixo flores para ela e até converso. Criei na minha mente, uma personalidade pra ela, e até um tom de voz especifico, quando a imagino falando.
Sempre que venho ver minha mãe, lembro das palavras da minha velha amiga Clarice: “Ladrões de rosas e de pitangas tem cem anos de perdão.” Deixo as pitangas para a Clarice, mas fico com as rosas (que nem sempre são rosas, mas não tem problema, a mamãe gosta de todo tipo de flores), acreditando que meu crime merece cem anos de perdão. Roubei a mãe de alguém e toda noite, roubos pais, tios e primos. Só roubo o que preciso, sem me exceder. Mas às vezes eu pergunto pra mamãe se eu poderia ter um irmão ou irmã...
Enquanto eu fico aqui, falando com a mamãe, o coveiro fica lá enchendo a cara, vigiando o portão e (muito provavelmente) rindo de mim. Bom saber que eu o deixo feliz.
Ninguém nunca soube; ladrão de mãe merece o mesmo perdão que ladrão de pitangas. Se as velhinhas mortas pudessem falar, pediriam para que alguém as roubasse, como eu fiz com a Dona Cidinha. Mamãe.


0 comentários: