Ali está
ela, caída, estática. Seu belo e delicado rosto dormia sereno. Sua
maquiagem perfeita lhe cai muito bem, criando um rosto lindo e
misterioso. O vestido dela é roxo e branco, cheio de babados, como
aqueles usados pelas mais altas condessas da cidade... e aqui estou
eu, exausto, com o coração disparado; arrastar o machado até aqui
para acabar de vez com isso, não é coisa fácil. Eu sei que devo,
mas não quero, não com ela... Caminho até seu corpo adormecido e
lhe acaricio os cabelos cacheados. Aperto o machado na outra mão,
estou suando muito...
Como foi
que as coisas chegaram a isso?
Que me
lembro já faz uns meses, não sei quantos, mas são muitos. Muitos
meses desde que a encontrei. Eu estava no laboratório da StanCorp,
trabalhando em um projeto próprio, algo para tentar impressionar meu
pai, nada mais que o dono da empresa e um dos lordes mais ricos da
Inglaterra. Sir Richard Stanford. Sou o filho mais novo dos Stanford,
e minha existência é muito ensombrada pela presença do meu irmão
Manfred. Ele é tudo que o papai sempre quis num filho, ele nunca
deixou de dizer isso para nós dois, então, esse meu projeto era uma
forma de mostrar a ele que eu também era capaz de algo... Engraçado
como naquela época eu me importava com algo a mais além dela...
Ah sim,
o flame pack! A grande idéia! Consistia de um cilindro de
metal cheio de gás acetileno preso ás costas, ligado à uma manopla
metálica por um cano de borracha. Um lança chamas mais fácil de
carregar. Eu achei mesmo que se eu construísse um desses o meu pai
repararia em mim, e ainda melhor: daria ordens para construção em
massa do mesmo. Então, todas as noites para cá eu vinha, projetar
e trabalhar nisso, como se mais nada importasse. Naquela época tudo
que eu queria era mostrar que sei fazer algo.
E assim
foram noites e noites a fio; soldando, cortando, martelando... Sabe,
trabalhar com fogo nem sempre é seguro e as vezes eu me causava
queimaduras, nada muito grave mas ainda assim, ferimentos
indesejados. Uma dessas vezes, quando fui testar a manopla com
lança-chamas, algo deu errado e ela explodiu na minha mão. Explodiu
é um modo de dizer, ela começou a pegar fogo, mas por sorte, eu
consegui tirar a tempo e os danos não foram muito grandes, o
problema era que àquela hora da noite eu estava sozinho e tive que
correr para enfermaria porque ninguém viria para me ajudar. Desci as
escadas e corri pelo corredor longo do almoxarifado até a sala dos
remédios, por que tinha que ser tão longe?
Tratei
minha mão, usei aquela pomada pra pele queimada e a enfaixei como
pude. Tive raiva de mim e dessa idéia idiota. Saí da enfermaria
batendo a porta, mas sabia que logo que a dor passasse a raiva também
passaria.
Foi
então que ouvi.
Parecia
um choro, era baixo, como um sussurro, como se alguém estivesse
tentando esconder que estava chorando. “Quem ta ai?” gritei.
Minha voz ecoou, mas não houve retorno. De fato o choro havia
sumido. Com o lampião na mão e uma chave inglesa na outra, avancei
pelo corredor. Percebi nesse momento que eu estava numa parte muito
afastada do laboratório, uma parte que eu nunca tinha estado antes.
“Você
está ai? Não vou te machucar!” disse, apesar de estar segurando
uma pesada chave na outra mão. Não houve resposta. Caminhei até
uma porta estranha; toda cinzenta e sem nenhuma indicação do que
deveria ter lá dentro. Além disso, a porta estava entreaberta o que
não é comum nesse lugar.
“Alô?”
abri a porta lentamente, deixando a luz entrar. A verdade é que eu
estava morrendo de medo. Aos poucos, abri toda a porta. Ergui o
lampião para poder ver a sala toda: muitas caixas empilhadas, todas
empoeiradas, pareciam que estavam ali há muito tempo. Esperei meus
olhos se acostumarem com aquela iluminação, quando então, notei
algo no escuro, era um pano preto cobrindo algo. Parecia uma pessoa
sentada numa cadeira. Seria ela quem eu ouvi chorando?
“Ei
você” chamei, me fazendo de valente. Nada. Não se mexia nem
falava nada. Lentamente, aproximei-me mais e com a ponta da chave,
ergui o pano... E foi quando eu a conheci. Estava sentada e amarrada
na cadeira com a cabeça caída para frente. Os cabelos eram
castanhos e cacheados e o vestido era bonito, mas antigo, roxo e
branco.
Tentei
falar com ela e esperei um tempo, olhando-a, mas não se mexia.
Toquei-a no rosto e levantei sua cabeça; sua pele era fria. O rosto
estava todo pintado como maquiagem. Os olhos estavam fechados.
Percebi então, que era uma boneca.
Soltei
as cordas dela. Porque teriam amarrado ela dessa forma? E quem será
que a trouxe para cá? Seria coisa do meu pai? Tratei de iluminar o
resto da sala, queria vê-la melhor. Era linda, quase parecia viva.
Deduzi que tinha a minha altura. Por algum tempo fiquei parado
admirando-a: o desenho do seu rosto, seus lábios pequenos e bonitos,
seu corpo... Meus olhos corriam pelo corpo dela, estava de sapatos
pretos e meias brancas e compridas. Toquei-a no rosto, não consegui
identificar do que era feita aquela pele, era macia, quase como pele
humana, mas tinha algo na textura que era diferente. Com meu dedo,
mexi seus lábios e abri sua boca: era seca, mas possuía dentes
fortes, talvez feitos de alguma liga metálica. Desci os olhos pelo
pescoço dela e inevitavelmente olhei seus seios... Não eram
grandes, mas eram perfeitos...
Estremeci.
Senti um calor correr por todo meu corpo. Nunca tive uma mulher assim
tão perto de mim. Nunca tive mulher alguma, na verdade. Não sou
bonito, não tenho bom papo, não sei dançar e não sou popular...
Isso deve explicar muito sobre mim, eu acho.
Antes
que pudesse perceber, eu estava com minha mão nos seios dela, cabia
todo na minha mão. Eram duros, mas, macios ao toque, como a pele.
Meu coração estava acelerado: meu interesse pessoal era muito maior
do que o interesse científico que eu deveria ter.
Pousei
minha mão enfaixada a sua coxa por cima do vestido e a apertei;
parecia muito real. Na verdade era tão real que eu tinha medo que
ela ganhasse vida a qualquer momento. Gentilmente, se é que isso é
possível, deslizei minha mão para baixo do vestido dela, apalpando
o interior daquelas coxas macias e frias. Logicamente, minha mão
subiu um pouco mais... Fiquei surpreso ao sentir que ela estava
vestindo calcinha. Se bonecas pequenas vestem, porque as grandes não?
Aquele
foi o momento mais erótico que tive em toda minha vida, eu estava
elétrico e mais quente do que a fornalha de uma locomotiva, mas ao
mesmo tempo sentia o coração pesar; ela estava ali parada sem poder
se defender dos meus assédios. Era só uma boneca, mas eu me sentia
um canalha. E eu não sou assim, nunca fui. Beijei-a.
Grudei
meus lábios aos lábios de borracha dela, aliciando suas intimidades
artificiais. Meu coração estava agitado como um motor à vapor,
pela primeira vez eu senti êxtase completo. Meus beijos faziam a
cabeça dela pender para trás, então usei a mão que estava em seus
seios para segura-la pela nuca, igual àquelas historias de amor.
Com
muito cuidado, enfiei a mão por trás de seus cabelos e a segurei
para dar mais apoio ao meu beijo, quando então senti algo. Letras.
Uma palavra gravada em sua nuca. Minha curiosidade foi muito grande,
seria um nome? Uma data? Parei o beijo para olhar; afastei seus
cachos castanhos e li uma palavra quase apagada: Kaledrina.
Seria
seu nome? Pensei. Ou quem sabe o nome de uma antiga dona...
Kaledrina. Um nome diferente. Deve ser estrangeiro. Diferente mais
muito bonito, assim como ela.
“Vou
chamá-la de Kale” disse a ela, como se ela fosse entender. “Você
gosta?” sem resposta, claro.
CONTINUA...
by kennen