Quem
nunca roubou nada, não consegue me entender. Eu roubo coisas. Coisas
que não são minhas, eu roubo. Roubo o que não tenho e gostaria de
ter... Não é assim que funciona? Comigo não seria diferente, sou
um ladrão.
O que eu
roubo é algo especial, pelo menos pra mim. Eu tenho um ajudante de
crime; alguém que fica vigiando, cuidando para que ninguém
atrapalhe. No começo eu fazia sozinho e fazia em um lugar diferente.
Era bem ao público mesmo; eu me sentava em um banco desses de praça
e ficava olhando mães carregando carrinhos de bebês, pais comprando
sorvete para os filhos, mas isso acabou enchendo o saco; eu queria
algo melhor.
Foi
então que, em uma das minhas caminhadas eu encontrei o lugar ideal:
um cemitério. Cemitérios são lugares onde muita saudade é
deixada. Um lugar cheio de lembranças boas, mas às vezes,
dolorosas. Ter saudades daqueles que você amou e perdeu é melhor do
que não ter ninguém pra ter saudades, não é? Eu sempre pensei que
sim.
É aqui
que entra meu ajudante; o coveiro. Eu dou pra ela um litro de cachaça
barata toda semana e ele me deixa entrar de madrugada. Quando eu
chego, ele abre o portão com cuidado e fica por lá um tempo,
cuidando se ninguém se aproxima. Ele fica me dando cobertura, por um
litro de pinga, mas eu não posso criticá-lo: aposto que ele pensa o
mesmo de mim.
Deixo-o
para trás, procurando por alguma lápide, pensando no que eu
gostaria de roubar hoje. Não tenho memórias de um pai, nunca tive
um. Eu quero um. Aproximo-me de um túmulo com um nome de homem, um
homem que pelas datas gravadas na lápide, teria idade para ser meu
pai. Encaro a lápide com olhos duros e penetrantes. Fico imaginando
que tipo de pai ele foi: será que foi amado como deveria? Ou será
que era do tipo que bebia muito e batia nos filhos? Muita gente sente
falta dele? Eu espero que sim... Ser esquecido, isso sim, é morrer.
Olhando seu túmulo, eu fico pensando se ele me amaria, e se cuidaria
bem de mim; se me compraria sorvete, ou me levaria para assistir
futebol com ele. Encosto a mão na lápide e solto um longo suspiro.
Não é meu.
O pouco
que me lembro da minha mãe, prefiro não lembra; não vale como
lembrança para se ter de mãe. Sempre me disseram que mãe só tem
uma e eu levo isso muito a serio. Eu roubo muitos pais, tios e primos
por aqui, mas mãe, só tem uma que eu gosto de roubar pra mim. Ah
sim, tem outra coisa que eu roubo: flores. Eu pego flores de outros
túmulos para levar para a Dona Cidinha. Dona Cidinha é a mãe que
eu roubei. O filho dela é um idiota que não dá valor para a mãe
que tinha, mas eu dou, por isso, agora ela é minha. Deixo flores
para ela e até converso. Criei na minha mente, uma personalidade pra
ela, e até um tom de voz especifico, quando a imagino falando.
Sempre
que venho ver minha mãe, lembro das palavras da minha velha amiga
Clarice: “Ladrões de rosas e de pitangas tem cem anos de perdão.”
Deixo as pitangas para a Clarice, mas fico com as rosas (que nem
sempre são rosas, mas não tem problema, a mamãe gosta de todo tipo
de flores), acreditando que meu crime merece cem anos de perdão.
Roubei a mãe de alguém e toda noite, roubos pais, tios e primos. Só
roubo o que preciso, sem me exceder. Mas às vezes eu pergunto pra
mamãe se eu poderia ter um irmão ou irmã...
Enquanto
eu fico aqui, falando com a mamãe, o coveiro fica lá enchendo a
cara, vigiando o portão e (muito provavelmente) rindo de mim. Bom
saber que eu o deixo feliz.
Ninguém
nunca soube; ladrão de mãe merece o mesmo perdão que ladrão de
pitangas. Se as velhinhas mortas pudessem falar, pediriam para que
alguém as roubasse, como eu fiz com a Dona Cidinha. Mamãe.
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