sexta-feira, 21 de março de 2014

Por entre as rosas



O raio de sol atravessou as frestas da janela, atingindo os olhinhos de garota que dormia. Ela torceu o rosto, fazendo uma careta devido à luz. Em seguida veio um longo bocejo. Tentou abrir os olhos, mas precisou esfregá-los com as mãos, antes de conseguir abri-los totalmente.
No segundo seguinte, pulou da cama, jogando o edredom para o lado; era como se sua preguiça matinal estivesse acabado em um segundo. Cambaleou até a janela e abriu com pressa. O sol brilhava suave no céu, parece ser um lindo dia, mas ela estava pouco interessada no quão bonito ou feio o clima poderia estar. Seus olhinhos correram pelo chão de grama e pela cerca de madeira branca. A cerca era formada de tabuas brancas enfileiradas. Rente à cerca, uma roseira de rosas vermelhas da sua mãe, e do outro lado, a casa de Jaqueline, sua vizinha.
Apertou os olhos em um ponto, entre as rosas e achou o que procurava: um envelope de carta de cor amarela estava preso por entre as frestas da cerca, em meio às rosas. Um largo sorriso cortou seu rosto de ponta a ponta. Correu para fora do quarto, ainda só de camisola; abriu a porta com rapidez e ainda mais rápida atravessou o corredor até a cozinha.
A cozinha estava impregnada com cheio de café e torradas; a mãe preparava a refeição da manhã.
- Bom dia mãe. – disse ela correndo para a porta da cozinha.
- Bom dia Miranda...
Mal pôde terminar a frase e a filha já estava do lado de fora, pisando na grama com pés descalços.
- Calce um chinelo menina! – gritou a mãe, mais pra si mesma do que pra filha.
Ela não ouvia. Para Miranda, a única coisa que sua mente conseguia pensar era naquela carta. Enfiou a mão por entre as rosas e puxou-a da fresta com delicadeza. No espaço do remetente havia um nome: Jaqueline.
Apertou a carta contra o peito, sorrindo de olhos fechados. Olhou mais uma vez para o envelope, confirmando o nome nele escrito. Sim, era mesmo dela.
Desde que tivera conhecido Jaqueline, as duas tornaram-se melhores amigas muito rapidamente. A vizinha tinha o costume de lhe enviar cartas e bilhetes pela cerca. Quase todas as manhãs, uma cartinha nova surgia. Eram vizinhas e estudavam na mesma escola. Entre elas não havia segredos, era como se dividissem a mesma alma:
13/03/2002
Querida Miri
Desde que nos conhecemos, penso em você todos os dias. É a melhor amiga que uma garota poderia querer ter. Ontem quando andamos de patins juntas na praça, foi muito divertido. Eu acho muito fofo o jeito que você patina, sabe, toda torta, quase caindo rsrsrsrsrs ^^
Quando vamos de novo? Eu quero te ensinar a patinar direito para que você não caia igual ontem! Eu achei que você tinha se machucado e fiquei assustada, meu coração quase pulou pra fora! Que bom que não foi nada serio, eu não sei se iria agüentar te ver chorando ou machucada...
Você sabe que eu amo seu sorriso, seu lindo sorriso é só meu, você sabe né?
Com amor, Jacky.


14/03/2002
Querida Jacky
Desculpe a demora para responder sua cartinha. Só pra constar, eu amei muito! Adorei também essa sua idéia de passar cartas pela fresta da cerca! Essa é a primeira que eu estou tentando mandar, então, não fique brava comigo se ela amassar ou ficar feia! Você já me mandou tantas até hoje e eu nunca respondi nenhuma, mas hoje isso vai mudar!
Eu sei que eu não andar de patins muito bem, mas com você me ensinando eu vou aprender bem rapidinho! Você segura minha mão e me puxa pra junto de você. Eu gostei muito, menos aquela hora que eu caí, quase caiu em cima de você! Que sorte que não me machuquei, que sorte minha que você tava lá comigo! Tenho sorte de ter você como amiga. Meu sorriso é só seu, se o seu for só meu.
Com amor, Miri.

16/03/2002
Oi Miri!
Você parecia meio tristinha hoje na saída da escola. O que aconteceu? Tirou alguma nota baixa? Por favor, me diga por que estava tão triste. Você sabe que pode me contar tudo que você quiser, não sabe? Somos as melhores amigas do mundo todo, não somos? Eu não confio em ninguém a não ser você. No recreio quando saímos para lanchar juntas foi muito legal, espero que possamos fazer isso todos os dias! Podemos até trocar lanche se você quiser.

Por favor me responda tá?
Sua Jacky.

17/03/2002
Oi Jacky.
Não é nada serio não, quer dizer, não muito. Sabe a Giovana da minha sala? Nós brigamos hoje. Foi bobagem, e eu acho que eu tava meio errada, sei lá. A professora nos colocou juntas para um trabalho. Eu queria pintar os mapas de verde e vermelho, mas ela não quis. Foi bobo sabe? Mas eu não quis dar o braço a torcer e aí acabamos discutindo... Ela me chamou de gorda, e ai eu fiquei triste, mas foi só isso, não precisa se preocupar ta? Eu tava triste mas quando vi sua cartinha por entre as rosas, eu dei um sorrisão tão grande que toda minha tristeza foi embora.
Lógico que podemos lanchar juntas todos os dias! É o que eu quero. Só não sei sobre trocar de lanche, eu gosto do lanche da minha mãe. Rsrsrsrs
Com amor
Miri.

19/03/2002
Oi Miri, tudo bem?
Eu soube que a Giovana se machucou hoje na aula de educação física. Ouvi as meninas dizendo que ela caiu e machucou a boca no chão. Não sei quanto a você, mas eu não senti nada quando me disseram, sabe? Quer dizer, bem feito pra ela! Ninguém gosta dela mesmo, e alem do mais, ela te xingou, e isso faz eu gostar ainda menos dela. Quem sabe agora ela não aprender a ficar de boca fechadinha quando pensar em xingar alguém, né? Vamos tomar um sorvete no shopping amanha? Eu pago desta vez certo? O próximo é por sua conta!

Com muito carinho, Jacky.



21/03/2002
Querida Jacky
Eu queria agradecer o sorvete que você me deu. Eu sei que já fiz isso pessoalmente, mas acho importante falar por carta, por que assim, fica escrito e você pode ler sempre que quiser. Eu leio suas cartas o tempo todo sabia? Eu as guardo em um baú embaixo da minha cama. Guardo em um baú por que pra mim é um grande tesouro muito lindo e valioso. Você guarda as minhas cartinhas também? Espero que sim viu? Se não, eu paro de sorrir pra você ta?
Sabe Jacky, me disseram hoje uma coisa que eu não gostei. Disseram que você empurrou a Giovana na Educação física. É verdade? Eu não gosto da Giovana, mas não queria que ela se machucasse assim.

Pensando em você.
Miri.

22/03/2002
Miranda.
Que absurdo é esse? Como você duvida de mim? Você me conhece e sabe que eu não faria algo assim. Não gostei não ta? Não sei quem te falou isso, mas com certeza foi alguém que tem inveja de nós duas. Não acredite!
Jaqueline.

22/03/2002
Oi Jacky...
Puxa vida, fala comigo! Eu te dei um oi hoje e você não respondeu. Fui te procurar para lanchar e não te achei. Por favor, não fica brava comigo, eu sei que você não fez aquilo. Me desculpe ferir seus sentimentos, você sabe que eu te amo. Me desculpa.
Com amor, Miri.

28/03/2002
Olá Miri.
Já faz uns dias que não trocamos cartas. Eu fui muito rude com você. Me desculpe ter feito você chorar, por favor. Eu também chorei muito, eu não podia acreditar quando você me perguntou se era verdade que eu tinha mesmo feito aquilo. Eu estava brava, mas te ver me olhando todos os dias na escola, acenando pra mim... Cortou meu coração. Eu tentei Miri. Tentei ficar brava com você e tentei não pensar mais em você.
Eu te perdôo, se você me perdoar também.
Eu te amo.
Jacky.

29/03/2002
Querida Jacky.
Sua carta de ontem me deixou sem fala. Eu achei que você me odiava e que não queria mais me ver, mas eu tava enganada! Você também sofreu né? Eu juro Jacky. Eu juro que não vou deixar ninguém me enganar com mentiras. Elas são todas invejosas porque nós temos umas as outras e elas só tem amigas falsas!
Hoje quando você me abraçou na escola, eu chorei tanto em você que molhei sua roupa com minha lagrimas. Todo mundo olhou estranho pra gente, rsrsrsrsrs.
Sabe Jacky, eu não ligo pra isso, eu não ligo pra nenhum deles. Eu gosto de você e eu quero ficar sempre com você.
Juntas pra sempre
Miri.

02/04/2002
Bom dia Miri.
Eu queria falar algo com você, mas acho mais fácil falar por carta, já que este é nosso meio especial de conversar. Quem é aquele menino de cabelo loiro que tava falando com você ontem na saída da aula? O que ele queria com você? É amiga dele? E por que você sorriu pra ele? Seus sorrisos são só meus e os meus só seus.
Triste,
Jacky.

03/04/2002
Bom dia Jacky.
Fica calma, por favor! Ele se chama Raphael, é só um amigo que me fez um favor. Eu esqueci o livro de Geografia em cima da minha mesinha e ele me emprestou o dele, só isso. Eu usei o livro dele e ele dividiu um livro com o amigo dele, simples. Eu tava agradecendo ele depois. Eu não sorri pra ele como sorrio pra você, aquele foi só um sorriso de agradecimento. Jacky, você tem muito mais do que meu sorriso, você tem meu coração. Não precisa ter ciúmes assim.
Não fique triste. Te amo.
Miri.

04/04/2002
Olá Miranda.
Fico triste sim. Eu não esperava ver aquilo. Eu não sorrio pra ninguém, não dependo de ninguém. Eu não quebro minha promessa de não sorrir pra mais ninguém.
Talvez esteja na hora de você ver se realmente me ama, Miranda. Amor não é algo só da boca pra fora. Eu só volto a confiar em você, quando suas palavras condisserem com seus atos.
Pense nisso.
Jaqueline.

05/04/2002
Querida Jacky.
Porque faz isso comigo? Assim você parte meu coração em milhões de pedaços! Estou tremendo e chorando agora, escrevendo essa carta. Não seja assim, por favor. Eu me afastei do Raphael, eu não falo mais com ele. Eu juro. Sinto saudades.
Sua Miri.

08/04/2002
Jacky
Fala comigo, por favor! Eu não te reconheço mais. Você costumava ser carinhosa mas agora parece uma roseira: linda mas cheia de espinhos. Acordo todos os dias e vou olhar para a fresta da cerca, mas não encontro nada por entre as rosas. Será que você está lendo minhas cartas?
Sinto saudades
Miri.


11/04/2002
Querida Jacky.
Você faltou hoje de novo... Faz tempo que não sei nada de você. Por favor, apareça, fale comigo! Você continua pegando minhas cartas? Ou é alguém mais que ta pegando elas?
Te amo. Miri.


20/04/2002
Miranda...
Eu vi Miranda. Então é assim que você me “ama”? Eu te vi brincando com um cachorrinho hoje na praça. Parece que já me esqueceu bem rápido hein? Sou menos que um cachorro pra você. É isso? Cada vez que você o abraçava e sorria pra ele, eu imaginava minhas unhas rasgando a pele dele. Eu odeio esse cachorro. Livre-se dele Miranda!
Jaqueline.

21/04/2002
Jacky...
Quando vi sua carta no meio das rosas essa manhã, eu quase não acreditei. Eu to chorando tanto ultimamente que quase não tenho mais forças pra nada. Eu tava tão sozinha, você some e não diz pra onde vai nem o que aconteceu. Minha mãe me deu um cachorrinho sim, o nome dele é Nico. Por favor Jacky, não odeie o Nico, ele é nosso. Vamos cuidar dele juntas. Vai ser só eu, você e o Nico, e mais NINGUEM na nossa vida.
Miri

22/04/2002
Miranda
Você fez a sua escolha então. Prefere me “dividir” com esse saco de pulgas asqueroso, então ta tudo bem! Sabe, eu bem que podia me atirar na frente de um carro e ser atropelada, quem sabe assim você se arrependeria do mal que você me faz! Você não tem o direito de bagunçar minha vida desse jeito Miranda, não tem! Você não sabe quem eu sou, de onde vim e do que sou capaz! Aguente as consequências agora.
Jaqueline.

23/04/2002
Jaqueline.
EU to te fazendo mal? Eu quase desmaio todos os dias de tanto chorar por sua causa e você me diz isso? Me ameaça e ainda diz que vai se jogar na frente de um carro pra eu me arrepender? Eu não desisti de amar você, mas você foi longe demais agora! Eu amo o Nico e amo você. Posso amar os dois. Posso sorrir para os dois. Não somos mais tão pequenas assim ta? Não precisa agir feito criancinha pra ganhar atenção! E mais outra. Só fale comigo agora se for pra pedir desculpas. Eu te amo e posso te dar outra chance.
Miranda.


Naquela noite, Miranda foi dormir com Nico embaixo da cama, como sempre. A diferença era que desta vez ela não estava chorando; estava com raiva. Jacky tivera passados dos limites e precisava se desculpar.
Fechou os olhos, rolou na cama e tentou ignorar a raiva para dormir logo. Teve um sonho horrível: sonhou que Jacky tinha pele vermelha, chifres e dentes pontudos na boca, como um demônio. No sonho, Jacky estava com os olhos injetados de sangue e dizia que ela iria se arrepender, que não deveria sorrir pra mais ninguém.
Acordou. Já estava quase amanhecendo. O sonho fora terrível, mas agora já havia acabado. Levantou-se, vestiu os chinelos e caminhou ate a porta.
Parou no meio do caminho, deu meia volta e encarou a janela fechada. Foi até ela e a abriu, sem muitas esperanças. Mas para sua surpresa, estava enganada. Por entre as rosas, um envelope amarelo.
Não sabia dizer se aquilo era bom ou ruim, mas resolveu ir ate lá assim mesmo. Era muito cedo, sua mãe ainda dormia. Miri andou ate o lado de fora e esticou a mão pela roseira e pegou a carta. Abriu-a.
Cuidado onde pisa.
Apenas isso.
De inicio ela não entendeu muito, mas então, decidiu olhar para baixo. O chão onde pisava era de barro e parecia que havia algo enterrado bem onde pisava. O desespero tomou conta da garota; largou a carta, caiu de joelhos e começou a cavar a terra úmida com as mãos. Seu coração estava acelerado e lágrimas começaram escorrer de seus olhos.
Seu corpo todo travou ao encontrar um saco de pano no buraco. Um saco de pano manchado de sangue. Com as mãos sujas e trêmulas, ela abriu o saco...
Era Nico. Estava cheio de cortes por toda parte e com uma enorme ferida na cabeça, parecia que tivera sido surrado ate a morte com uma garrafa. Miri sentiu as entranhas serem corroídas pela dor de ver seu cachorrinho daquela forma; como se fosse um pedaço de carne no açougue.
A pressão subiu. Tudo ficou escuro. Suas pernas perderam a força e ela desmaiou...

26/04/2002
Querida Jacky.
Eu voltei para casa hoje. Os médicos disseram que foi apenas um choque, e que anda grave me aconteceu. Eu não contei a verdade para ninguém. Juro. A policia diz que Nico deve ter sido morto por vândalos e arruaceiros e estão fingindo estar interessados em investigar quem realmente o matou. Eu juro que em momento algum eu mencionei o seu nome. Você está certa sobre mim Jacky, eu errei, eu não tive maturidade o bastante para levar nossa relação mais a sério. Eu peço que me perdoe, eu nunca mais vou te ferir, por que eu te amo, certo? E você me ama, certo? Eu não preciso de mais ninguém enquanto eu tiver você. Por entre as rosas, eu entrego meu pedido de perdão.
Eu só preciso do seu amor Jacky. Nunca mais vou te contrariar, prometo.
Juntas pra sempre.
Miri.


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