O raio de
sol atravessou as frestas da janela, atingindo os olhinhos de garota
que dormia. Ela torceu o rosto, fazendo uma careta devido à luz. Em
seguida veio um longo bocejo. Tentou abrir os olhos, mas precisou
esfregá-los com as mãos, antes de conseguir abri-los totalmente.
No
segundo seguinte, pulou da cama, jogando o edredom para o lado; era
como se sua preguiça matinal estivesse acabado em um segundo.
Cambaleou até a janela e abriu com pressa. O sol brilhava suave no
céu, parece ser um lindo dia, mas ela estava pouco interessada no
quão bonito ou feio o clima poderia estar. Seus olhinhos correram
pelo chão de grama e pela cerca de madeira branca. A cerca era
formada de tabuas brancas enfileiradas. Rente à cerca, uma roseira
de rosas vermelhas da sua mãe, e do outro lado, a casa de Jaqueline,
sua vizinha.
Apertou
os olhos em um ponto, entre as rosas e achou o que procurava: um
envelope de carta de cor amarela estava preso por entre as frestas da
cerca, em meio às rosas. Um largo sorriso cortou seu rosto de ponta
a ponta. Correu para fora do quarto, ainda só de camisola; abriu a
porta com rapidez e ainda mais rápida atravessou o corredor até a
cozinha.
A
cozinha estava impregnada com cheio de café e torradas; a mãe
preparava a refeição da manhã.
- Bom
dia mãe. – disse ela correndo para a porta da cozinha.
- Bom
dia Miranda...
Mal
pôde terminar a frase e a filha já estava do lado de fora, pisando
na grama com pés descalços.
- Calce
um chinelo menina! – gritou a mãe, mais pra si mesma do que pra
filha.
Ela não
ouvia. Para Miranda, a única coisa que sua mente conseguia pensar
era naquela carta. Enfiou a mão por entre as rosas e puxou-a da
fresta com delicadeza. No espaço do remetente havia um nome:
Jaqueline.
Apertou
a carta contra o peito, sorrindo de olhos fechados. Olhou mais uma
vez para o envelope, confirmando o nome nele escrito. Sim, era mesmo
dela.
Desde
que tivera conhecido Jaqueline, as duas tornaram-se melhores amigas
muito rapidamente. A vizinha tinha o costume de lhe enviar cartas e
bilhetes pela cerca. Quase todas as manhãs, uma cartinha nova
surgia. Eram vizinhas e estudavam na mesma escola. Entre elas não
havia segredos, era como se dividissem a mesma alma:
13/03/2002
Querida
Miri
Desde
que nos conhecemos, penso em você todos os dias. É a melhor amiga
que uma garota poderia querer ter. Ontem quando andamos de patins
juntas na praça, foi muito divertido. Eu acho muito fofo o jeito que
você patina, sabe, toda torta, quase caindo rsrsrsrsrs ^^
Quando
vamos de novo? Eu quero te ensinar a patinar direito para que você
não caia igual ontem! Eu achei que você tinha se machucado e fiquei
assustada, meu coração quase pulou pra fora! Que bom que não foi
nada serio, eu não sei se iria agüentar te ver chorando ou
machucada...
Você
sabe que eu amo seu sorriso, seu lindo sorriso é só meu, você sabe
né?
Com
amor, Jacky.
14/03/2002
Querida
Jacky
Desculpe
a demora para responder sua cartinha. Só pra constar, eu amei muito!
Adorei também essa sua idéia de passar cartas pela fresta da cerca!
Essa é a primeira que eu estou tentando mandar, então, não fique
brava comigo se ela amassar ou ficar feia! Você já me mandou tantas
até hoje e eu nunca respondi nenhuma, mas hoje isso vai mudar!
Eu sei
que eu não andar de patins muito bem, mas com você me ensinando eu
vou aprender bem rapidinho! Você segura minha mão e me puxa pra
junto de você. Eu gostei muito, menos aquela hora que eu caí, quase
caiu em cima de você! Que sorte que não me machuquei, que sorte
minha que você tava lá comigo! Tenho sorte de ter você como amiga.
Meu sorriso é só seu, se o seu for só meu.
Com
amor, Miri.
16/03/2002
Oi
Miri!
Você
parecia meio tristinha hoje na saída da escola. O que aconteceu?
Tirou alguma nota baixa? Por favor, me diga por que estava tão
triste. Você sabe que pode me contar tudo que você quiser, não
sabe? Somos as melhores amigas do mundo todo, não somos? Eu não
confio em ninguém a não ser você. No recreio quando saímos para
lanchar juntas foi muito legal, espero que possamos fazer isso todos
os dias! Podemos até trocar lanche se você quiser.
Por
favor me responda tá?
Sua
Jacky.
17/03/2002
Oi
Jacky.
Não é
nada serio não, quer dizer, não muito. Sabe a Giovana da minha
sala? Nós brigamos hoje. Foi bobagem, e eu acho que eu tava meio
errada, sei lá. A professora nos colocou juntas para um trabalho. Eu
queria pintar os mapas de verde e vermelho, mas ela não quis. Foi
bobo sabe? Mas eu não quis dar o braço a torcer e aí acabamos
discutindo... Ela me chamou de gorda, e ai eu fiquei triste, mas foi
só isso, não precisa se preocupar ta? Eu tava triste mas quando vi
sua cartinha por entre as rosas, eu dei um sorrisão tão grande que
toda minha tristeza foi embora.
Lógico
que podemos lanchar juntas todos os dias! É o que eu quero. Só não
sei sobre trocar de lanche, eu gosto do lanche da minha mãe.
Rsrsrsrs
Com
amor
Miri.
19/03/2002
Oi
Miri, tudo bem?
Eu
soube que a Giovana se machucou hoje na aula de educação física.
Ouvi as meninas dizendo que ela caiu e machucou a boca no chão. Não
sei quanto a você, mas eu não senti nada quando me disseram, sabe?
Quer dizer, bem feito pra ela! Ninguém gosta dela mesmo, e alem do
mais, ela te xingou, e isso faz eu gostar ainda menos dela. Quem sabe
agora ela não aprender a ficar de boca fechadinha quando pensar em
xingar alguém, né? Vamos tomar um sorvete no shopping amanha? Eu
pago desta vez certo? O próximo é por sua conta!
Com
muito carinho, Jacky.
21/03/2002
Querida
Jacky
Eu
queria agradecer o sorvete que você me deu. Eu sei que já fiz isso
pessoalmente, mas acho importante falar por carta, por que assim,
fica escrito e você pode ler sempre que quiser. Eu leio suas cartas
o tempo todo sabia? Eu as guardo em um baú embaixo da minha cama.
Guardo em um baú por que pra mim é um grande tesouro muito lindo e
valioso. Você guarda as minhas cartinhas também? Espero que sim
viu? Se não, eu paro de sorrir pra você ta?
Sabe
Jacky, me disseram hoje uma coisa que eu não gostei. Disseram que
você empurrou a Giovana na Educação física. É verdade? Eu não
gosto da Giovana, mas não queria que ela se machucasse assim.
Pensando
em você.
Miri.
22/03/2002
Miranda.
Que
absurdo é esse? Como você duvida de mim? Você me conhece e sabe
que eu não faria algo assim. Não gostei não ta? Não sei quem te
falou isso, mas com certeza foi alguém que tem inveja de nós duas.
Não acredite!
Jaqueline.
22/03/2002
Oi
Jacky...
Puxa
vida, fala comigo! Eu te dei um oi hoje e você não respondeu. Fui
te procurar para lanchar e não te achei. Por favor, não fica brava
comigo, eu sei que você não fez aquilo. Me desculpe ferir seus
sentimentos, você sabe que eu te amo. Me desculpa.
Com
amor, Miri.
28/03/2002
Olá
Miri.
Já
faz uns dias que não trocamos cartas. Eu fui muito rude com você.
Me desculpe ter feito você chorar, por favor. Eu também chorei
muito, eu não podia acreditar quando você me perguntou se era
verdade que eu tinha mesmo feito aquilo. Eu estava brava, mas te ver
me olhando todos os dias na escola, acenando pra mim... Cortou meu
coração. Eu tentei Miri. Tentei ficar brava com você e tentei não
pensar mais em você.
Eu te
perdôo, se você me perdoar também.
Eu te
amo.
Jacky.
29/03/2002
Querida
Jacky.
Sua
carta de ontem me deixou sem fala. Eu achei que você me odiava e que
não queria mais me ver, mas eu tava enganada! Você também sofreu
né? Eu juro Jacky. Eu juro que não vou deixar ninguém me enganar
com mentiras. Elas são todas invejosas porque nós temos umas as
outras e elas só tem amigas falsas!
Hoje
quando você me abraçou na escola, eu chorei tanto em você que
molhei sua roupa com minha lagrimas. Todo mundo olhou estranho pra
gente, rsrsrsrsrs.
Sabe
Jacky, eu não ligo pra isso, eu não ligo pra nenhum deles. Eu gosto
de você e eu quero ficar sempre com você.
Juntas
pra sempre
Miri.
02/04/2002
Bom
dia Miri.
Eu
queria falar algo com você, mas acho mais fácil falar por carta, já
que este é nosso meio especial de conversar. Quem é aquele menino
de cabelo loiro que tava falando com você ontem na saída da aula? O
que ele queria com você? É amiga dele? E por que você sorriu pra
ele? Seus sorrisos são só meus e os meus só seus.
Triste,
Jacky.
03/04/2002
Bom
dia Jacky.
Fica
calma, por favor! Ele se chama Raphael, é só um amigo que me fez um
favor. Eu esqueci o livro de Geografia em cima da minha mesinha e ele
me emprestou o dele, só isso. Eu usei o livro dele e ele dividiu um
livro com o amigo dele, simples. Eu tava agradecendo ele depois. Eu
não sorri pra ele como sorrio pra você, aquele foi só um sorriso
de agradecimento. Jacky, você tem muito mais do que meu sorriso,
você tem meu coração. Não precisa ter ciúmes assim.
Não
fique triste. Te amo.
Miri.
04/04/2002
Olá
Miranda.
Fico
triste sim. Eu não esperava ver aquilo. Eu não sorrio pra ninguém,
não dependo de ninguém. Eu não quebro minha promessa de não
sorrir pra mais ninguém.
Talvez
esteja na hora de você ver se realmente me ama, Miranda. Amor não é
algo só da boca pra fora. Eu só volto a confiar em você, quando
suas palavras condisserem com seus atos.
Pense
nisso.
Jaqueline.
05/04/2002
Querida
Jacky.
Porque
faz isso comigo? Assim você parte meu coração em milhões de
pedaços! Estou tremendo e chorando agora, escrevendo essa carta. Não
seja assim, por favor. Eu me afastei do Raphael, eu não falo mais
com ele. Eu juro. Sinto saudades.
Sua
Miri.
08/04/2002
Jacky
Fala
comigo, por favor! Eu não te reconheço mais. Você costumava ser
carinhosa mas agora parece uma roseira: linda mas cheia de espinhos.
Acordo todos os dias e vou olhar para a fresta da cerca, mas não
encontro nada por entre as rosas. Será que você está lendo minhas
cartas?
Sinto
saudades
Miri.
11/04/2002
Querida
Jacky.
Você
faltou hoje de novo... Faz tempo que não sei nada de você. Por
favor, apareça, fale comigo! Você continua pegando minhas cartas?
Ou é alguém mais que ta pegando elas?
Te
amo. Miri.
20/04/2002
Miranda...
Eu vi
Miranda. Então é assim que você me “ama”? Eu te vi brincando
com um cachorrinho hoje na praça. Parece que já me esqueceu bem
rápido hein? Sou menos que um cachorro pra você. É isso? Cada vez
que você o abraçava e sorria pra ele, eu imaginava minhas unhas
rasgando a pele dele. Eu odeio esse cachorro. Livre-se dele Miranda!
Jaqueline.
21/04/2002
Jacky...
Quando
vi sua carta no meio das rosas essa manhã, eu quase não acreditei.
Eu to chorando tanto ultimamente que quase não tenho mais forças
pra nada. Eu tava tão sozinha, você some e não diz pra onde vai
nem o que aconteceu. Minha mãe me deu um cachorrinho sim, o nome
dele é Nico. Por favor Jacky, não odeie o Nico, ele é nosso. Vamos
cuidar dele juntas. Vai ser só eu, você e o Nico, e mais NINGUEM na
nossa vida.
Miri
22/04/2002
Miranda
Você
fez a sua escolha então. Prefere me “dividir” com esse saco de
pulgas asqueroso, então ta tudo bem! Sabe, eu bem que podia me
atirar na frente de um carro e ser atropelada, quem sabe assim você
se arrependeria do mal que você me faz! Você não tem o direito de
bagunçar minha vida desse jeito Miranda, não tem! Você não sabe
quem eu sou, de onde vim e do que sou capaz! Aguente as consequências
agora.
Jaqueline.
23/04/2002
Jaqueline.
EU to
te fazendo mal? Eu quase desmaio todos os dias de tanto chorar por
sua causa e você me diz isso? Me ameaça e ainda diz que vai se
jogar na frente de um carro pra eu me arrepender? Eu não desisti de
amar você, mas você foi longe demais agora! Eu amo o Nico e amo
você. Posso amar os dois. Posso sorrir para os dois. Não somos mais
tão pequenas assim ta? Não precisa agir feito criancinha pra ganhar
atenção! E mais outra. Só fale comigo agora se for pra pedir
desculpas. Eu te amo e posso te dar outra chance.
Miranda.
Naquela
noite, Miranda foi dormir com Nico embaixo da cama, como sempre. A
diferença era que desta vez ela não estava chorando; estava com
raiva. Jacky tivera passados dos limites e precisava se desculpar.
Fechou
os olhos, rolou na cama e tentou ignorar a raiva para dormir logo.
Teve um sonho horrível: sonhou que Jacky tinha pele vermelha,
chifres e dentes pontudos na boca, como um demônio. No sonho, Jacky
estava com os olhos injetados de sangue e dizia que ela iria se
arrepender, que não deveria sorrir pra mais ninguém.
Acordou. Já estava quase amanhecendo. O sonho fora terrível, mas
agora já havia acabado. Levantou-se, vestiu os chinelos e caminhou
ate a porta.
Parou no meio do caminho, deu meia volta e encarou a janela fechada.
Foi até ela e a abriu, sem muitas esperanças. Mas para sua
surpresa, estava enganada. Por entre as rosas, um envelope amarelo.
Não sabia dizer se aquilo era bom ou ruim, mas resolveu ir ate lá
assim mesmo. Era muito cedo, sua mãe ainda dormia. Miri andou ate o
lado de fora e esticou a mão pela roseira e pegou a carta. Abriu-a.
Cuidado onde pisa.
Apenas isso.
De inicio ela não entendeu muito, mas então, decidiu olhar para
baixo. O chão onde pisava era de barro e parecia que havia algo
enterrado bem onde pisava. O desespero tomou conta da garota; largou
a carta, caiu de joelhos e começou a cavar a terra úmida com as
mãos. Seu coração estava acelerado e lágrimas começaram escorrer
de seus olhos.
Seu corpo todo travou ao encontrar um saco de pano no buraco. Um saco
de pano manchado de sangue. Com as mãos sujas e trêmulas, ela abriu
o saco...
Era Nico. Estava cheio de cortes por toda parte e com uma enorme
ferida na cabeça, parecia que tivera sido surrado ate a morte com
uma garrafa. Miri sentiu as entranhas serem corroídas pela dor de
ver seu cachorrinho daquela forma; como se fosse um pedaço de carne
no açougue.
A pressão subiu. Tudo ficou escuro. Suas pernas perderam a força e
ela desmaiou...
26/04/2002
Querida
Jacky.
Eu
voltei para casa hoje. Os médicos disseram que foi apenas um choque,
e que anda grave me aconteceu. Eu não contei a verdade para ninguém.
Juro. A policia diz que Nico deve ter sido morto por vândalos e
arruaceiros e estão fingindo estar interessados em investigar quem
realmente o matou. Eu juro que em momento algum eu mencionei o seu
nome. Você está certa sobre mim Jacky, eu errei, eu não tive
maturidade o bastante para levar nossa relação mais a sério. Eu
peço que me perdoe, eu nunca mais vou te ferir, por que eu te amo,
certo? E você me ama, certo? Eu não preciso de mais ninguém
enquanto eu tiver você. Por entre as rosas, eu entrego meu pedido de
perdão.
Eu só
preciso do seu amor Jacky. Nunca mais vou te contrariar, prometo.
Juntas
pra sempre.
Miri.
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