Duas da
manhã.
Ainda
não posso parar. Tenho que terminar....Tenho!!!
Com os
pensamentos voltados para sua mais recente aventura, Carlos não se
importava com os ponteiros do relógio que teimavam em percorrer
aquela mesma monótona circunferência de sempre.
As ideias
surgiam em sua mente como folhas e mais folhas de um roteiro pronto
esperando para ser lido. A criatividade no auge, tudo para que aquela
fosse sua obra prima, seu momento máster de uma carreira que até
hoje não havia ultrapassado a condição transcendental esperada por
muitos que a seguiam.
A
história, cujas letras eram marteladas num teclado, era inspirada
naquilo que mais impulsionava Carlos a escrever. E todas as noites
ele dedicava seu tempo para aquela exaustiva, mas compensatória
atividade.
Seus
dedos eram como máquinas e a mente estava a mil. Tudo o que ele
sentia era o som que as palavras produziam dentro de si como se
fossem parte de seu próprio organismo. Eram vivas as ideias que se
projetavam de sua cabeça e quase palpáveis.
E assim,
aquela dança com as palavras e ideias se prolongou até que a noite
se fez dia e o dia se fez noite novamente. Não sabia exatamente que
horas eram, mas quem se importava com aquilo? Não se lembrava do
dia, do sono, do banho, da comida, não se lembrava de nada, a não
ser de suas preciosas palavras.
E cada
vez que se levantava para fazer algo ou comer alguma coisa, ele se
lembrava de seu livro. Não queria abandona-lo, não tinha forças
para deixa-lo, era incapaz de se sentir bem estando longe das linhas
que continham as marcas de seus pensamentos.
A cada
parágrafo novo o colapso lhe vinha a mente.... Se eu o deixar
agora....não!! Sem intervalos, sem pausas!!!
Os dedos
anestesiados tornaram-se partes involuntárias dele mesmo. Não tinha
sono, não tinha fome, não tinha nada. Nada, a não ser sua ideia e
sua inspiração. Inspiração forte que o dominava por completo.
E a força
ou a inspiração que o fazia sempre persistir vinha de outra pessoa.
Vinha de alguém com quem Carlos desejava passar todos os dias, todos
os momentos e cada segundo. Essa força que lhe concedia capacidades
quase sobre-humanas estava impregnada no ambiente em que Carlos
escrevia. Cada parede, cada canto, em cima dos móveis, em cada
lugar. Lá estava. Era notável até mesmo para mim que não costumo
reparar muito e apenas faço o que tenho que fazer.
Mas para
Carlos eu abri uma exceção, um desvio da minha conduta imparcial e
inquestionável. E a primeira “coisa” que percebi ao encontrar
Carlos foi a extensão da sua inspiração, o tamanho irrevogável da
sua vontade. E todas as imagens, fotografias, recorte, textos,
pinturas, absolutamente tudo reportava o mesmo rosto, o mesmo traço,
a mesma descrição. A bela jovem, inspiração para Carlos.
Sua bela
obsessão que se transformou em palavras enquanto seu corpo definhava
por cansaço.
E agora
que observo mais atentamente a tela do monitor, percebo que Carlos
realmente está no fim de sua obra. Uma belíssima história
totalmente dedicada para seu amor.
O
ponteiro dá mais uma volta e para.
Acabou a
bateria, ele não percebeu.
Olho para
o lado e noto outro rosto. A familiar garota das fotos está ali.
Sorriso espectral.
No
monitor vejo Carlos digitar sua última frase e uma dedicatória
incrível. Não consigo esconder uma pontada de “sentimento”
quando vejo que também fui mencionada em seu livro.
Olho
novamente. Já esperei tempo demais e não posso atrasar. Já é
hora, Carlos. Penso comigo mesma.
Caminho
lentamente por detrás dele. E pela primeira vez em muito tempo sei
que fui também a responsável pelo cumprimento de algo, no caso,
aquelas palavras que se tornaram parte de um livro. Sou também a
causa da inspiração, mas isso não me engradece de forma alguma.
Em minhas
mãos sinto o peso que cada ser carrega e traz para mim.
Trabalho
terminado. Apago as luzes antes de sair.
O som do
teclado não é mais audível. A luz do monitor está acesa e as
palavras refletidas permanecerão fixas.
Os
ponteiros imóveis agora marcam duas da manhã.
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