Preparou
o último frasco, ouviu o gato ficar arisco. Os instintos aguçaram.
Alguém batia insistente na porta da pequena choupana. Estava de
volta no condado de Västra Götalands län.
_Helvetet!...
já vai... não bate mais, ouviu bem?! Vou arrancar a sua mão se
bater mais uma vez nessa maldita port...
Os olhos
do outro lado a fitavam. Não podia ser, não era... Impossível ! O
choque a fez recuar. A criatura a espreitava com seu olhar de ódio.
Ódio acumulado por anos e anos de existência.
Correu
para a floresta, mas não chegou ao fim da clareira. Seu corpo agora
estava inerte no chão, dolorido. Os órgãos estavam se dilacerando
por dentro, a cabeça fritava, mas conseguiu um momento de lucidez
para fazer algo que a pouco jugava inimaginável...
Lançou a
proteção.
A luz
envolveu o seu ser e se fundiu ao seu corpo. Sentiu uma espécie de
vazio e completo ao mesmo tempo. Então, era desse modo que a
proteção funcionava... sempre acreditou ser algo muito mais forte e
terrível ao se abdicar dos seus poderes. Tentou encontrar a
criatura em sua visão turva e observou apenas as bordas das vestes
esfarrapadas. Estava tremendo, sentia muito medo do que poderia
acontecer. Ouviu a voz sibilante e asquerosa sair dos lábios
daquele ser.
_ наконец
Ваша
шлюха!
E agora
era o fim. A punhalada foi rápida, mas não havia dor. Seu corpo se
fechou completamente e tudo o que saiu foi luz. Mas a luz não era
real, pois logo se transformou em sangue. Sangue morno que escorria
em sua pele. A dor veio, a proteção não funcionou, perdeu seus
poderes...
***
Acordou
assustada e se lembrou das palavras que com certeza Kastena diria.
“Devana, sonhei com você... deve sair daí, minha irmã... o ciclo
irá se iniciar... saia o mais depressa possível.”
O ciclo.
As três noites. O sabbat negro. O samhain. Tudo isso para se referir
ao tormento que sua vida se transformou desde que descobriu a
maldição imposta pela conversão da mãe.
Evvy, sua
tia, havia lhe contado a história da conversão de sua mãe e a
horrenda e misteriosa morte da bruxa. A tia sumiu logo em seguida,
depois apareceu louca. Havia caído nas mãos dos malditos
torturadores czaristas. A maldição que havia desencadeado tudo
consistiu em desespero, mortes e banimentos. Inclusive o próprio
exílio de sua amada irmã.
Havia
ocorrido no século XVI, seus poderes ainda eram parcos. Kastena
apareceu em sua porta, a irmã implorava por ajuda como se o mundo
fosse acabar e repetia que a estavam perseguindo. Ao fim da tarde,
avistou um soldado que ia em direção a cabana. Não conseguiu
impedir Kastena de lutar e teve que observar o corpo da irmã ser
rasgado por um punhal desde o umbigo até a boca. Implorou aos deuses
que redobrassem suas forças e usou seus poucos conhecimentos. Após
aquilo, tudo não passava de um borrão.
Em cada
vida que ela teve, a história se repetia. Um ciclo infindável de
perseguição até que houvesse um meio de quebra-lo. Havia
descoberto que o soldado czariano era na verdade um poderoso mago e
que também teve sua alma exilada pelos poderes que foram lançados
aquela noite. Estava sob a ira de um mago milenar e sem a proteção
ou o apoio da irmã.
A cada
ano tornava-se mais difícil se esconder. Porém, por sua
sobrevivência, ela precisava tentar, mesmo que permanecesse mais
trezentos anos nessa condição. Dessa vez havia escolhido um local
bem quente. Uma ilha.
Devana
off ________________________ Nêmeses on
A luz
fosca do véu estava se enfraquecendo. Logo seria a hora de atacar.
Destruiria aquela que arruinou sua vida, que havia prendido sua alma
e poderes numa dimensão. Selaria o destino de Devana com seu simples
estalar de dedos.
Ao cair
do véu, observou o pequeno suvenir em suas mão. Um ridículo cordão
de prata que havia permanecido em suas vestes durante anos a fio.
Hoje, finalmente, aquele cordão teria uma verdadeira utilidade.
_
давай, ты
свинья
идиота
!
Repetia
as palavras sentindo o prazer escorrer lhe pelos lábios. Observava a
figura patética que havia dominado. O seu trunfo.
_Agora
use a sua maldita ligação de sangue e encontre-a!
Sentiu
que não iria colaborar sem que um pequeno estímulo fosse dado.
Pousou as mãos sobre os cabelos muito claros. Sentiu a criatura
tremer. Passou os dedos bem devagar provocando uma ferida em sua
testa. A mente se abriu. Entrou e pôde ver onde aquela bruxa se
escondia. Finalmente, Devana! Não conteve o sorriso de carnificina
nos lábios amargos.
Nêmeses
off _________________________Devana
on
Devana se
preparava para o ritual viking que iniciaria o novo sabbat.
_ Jag ger
min själ till gudarna, Devana, gudinna av gudarna
Fez as
preces e pela primeira vez em anos lembrou-se da mãe. Afastou os
pensamentos da cabeça e olhou ao redor. Mata densa e pouco iluminada
pela fogueira que havia aceso.
Algo se
mover entre as árvores.
Escuridão
total.
Medo.
_Kastena?!
As duas
se abraçaram. A emoção era intensa. Estava trêmula. Tanto tempo
sem se reencontrarem. Mas de repente a irmã parou. Havia ficado
imóvel.
_Cuidado
Devana... é uma armadilha... ele me trouxe até aqui... me fez te
encontrar, te seguir...
Köhnvstro
se aproximou das duas. O monstro que matou sua irmã.
Mas havia
algo errado. O mago não se movia mais do que isso. De repente ela
percebeu o brilho que vinha das mãos do homem. Ouviu a voz de
Kastena:
_Va em
frente Devana, não o deixe escapar! Mate-o, agora!
Virou-se.
Encarou a irmã.
_Mate-o
você minha irmã, já que é mais forte do que eu... veja, ele está
preso, não fugirá...
A risada
ecoou pelos cantos. Perversidade dominava a aura daquela mulher.
_Não, De
va na... você deve mata-lo... você tem que fazer o trabalho sujo...
você me colocou nessa situação... e agora você irá me tirar
dela.
Seu corpo
foi empurrado contra uma árvore. Os poderes da irmã era maiores.
_Me
solta!
_Mate-o!
_Por
quê?!
Mais
risos saíram da garganta asquerosa da mulher. Sentia asco por ter o
mesmo sangue que tal criatura.
_Sou mais
forte do que você, mais rápida e de melhor linhagem... oh, está
surpresa?!... pois é... eu matei a mamãe...aquela vadia, igualzinha
a você... eu entreguei a tia E vv y para os torturadores, aquela
velha maldita... ao menos serviu para contar a minha verdadeira
descendência... imagine a mim, a bruxa mais poderosa que já
houve... filha do mago mais poderoso e de uma bruxa de linhagem
pura... e agora que estamos aqui, reunidas novamente... mostre que é
útil ao menos uma vez e curve-se a minha vontade... mate-o!
Sentia
nojo por nunca ter percebido o monstro com o qual convivia todo esse
tempo. A verdadeira nêmesis.
Por quê?
_Não se
acanhe, queridinha... sei que ai dentro, você sabe o tamanho da sua
fraqueza... Apenas escolha o lado correto. Mate-o!
Sentiu
que seria esmagada se não fizesse aquilo. Meneou a cabeça e afirmou
com os gestos. O corpo afrouxou. Andou até a criatura. Olhou-a nos
olhos. Realmente irreconhecível. Alcançou a adaga que estava
estendida para ela. Dirigiu-se até o homem ajoelhado. Ele estava
muito fraco.
_Deve
usar sua magia enquanto enfia a adaga no coração dele.
_E se eu
não acertar?
_Vai
acertar... porque só assim eu me libertarei...
Ajoelhou-se
a frente do homem. Olhou-o nos olhos. Encontrou ali o que havia
procurado durante anos e anos. A escolha em suas mãos.
_Kastena...
você ainda não me contou o por que dele ter ido até a cabana
aquela noite...
_Não
seja idiota! Mate-o!
_Responda-me
primeiro...
_Ele
estava te caçando, Devana. Queria te encontrar, agora mate-o!
_Mas...
porque ele me caçava se já tinha você, a filha dele?
_Mate-o!!!
Ergueu a
adaga, cuja lâmina se unia ao brilho do seu próprio poder. A força
se esvair de seu corpo. E de repente ouviu a voz de Kastena. A voz
que lhe dizia para matar. A lâmina desceu, mas foi o seu próprio
peito que ela atravessou. Sentiu a luz sair e depois o sangue.
_Então é
assim que se lança a proteção... – a vida deixava o seu ser
enquanto braços a recolhiam cuidadosamente. Os braços do seu pai,
seu amado pai.
Antes que
o véu se fecha-se, ela ainda pôde ver o desespero de Kastena e as
lágrimas que o pai derramava em sua face. Sua irmã passaria a
eternidade presa entre os dois mundos. Infelizmente o pai também,
mas ela, Devana, se reuniria a sua mãe naquilo que costumava chamar
de céu. E pela primeira vez na vida podia compreender o que era ser
livre.
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