O que
era aquilo? Onde eu estava? Mas o que...
Um clarão
passou por meus olhos. A cabeça doeu. A mão foi à testa.
Sinto-me
tonta como se o mundo estivesse girando ao meu redor.
Parei.
Esfreguei os olhos e tentei focar algo a minha volta. Muito cedo
ainda, a visão era fosca e muito luminosa. Pisquei diversas vezes.
Mantive os olhos abertos até captar as imagens ao meu redor.
Estava na
rua, disso eu sabia. Havia uma chuva fina que encharcava o meu corpo
e grudavam as minhas roupas. Não me lembrava de tê-las vestido.
Olhei para baixo e percebi que não usava nada mais do que uma
camisola. Estava descalça.
Demorei a
notar o lugar onde estava. Levei um susto.
Mas que
lugar era aquele? Eu estava no meio da cidade e pessoas corriam a
minha volta tentando se proteger da chuva que caia. Todos estava
aflitos segurando seus casacos e tentando se esconder dentro das
lojas.
Não
sabia o que estava havendo, pois ninguém parecia me notar. Todos
apenas passavam por mim. Precisava pedir ajuda, afinal como eu fui
parar ali?
Uma
senhora idosa estava caminhando com seus passinhos vagarosos. Fui
atrás dela. Ela não parecia se importar com a chuva como os outros
que ali estavam. Alcancei-a e toquei em seu ombro macio.
Iria
perguntar se ela sabia o que estava havendo ou se sabia como eu havia
chegado ali. E de repente eu escuto a voz da mulher. Era uma voz
suave e rouca, mas o engraçado foi ela não ter se virado para
falar, por isso não pude ver se os seus lábios se moviam.
Só sei
que eu escutei:” não se preocupe minha filha, nós estamos indo
para onde todos vão.”
A senhora
continuou o seu caminho antes que pudesse impedi-la ou lhe fazer mais
perguntas. Fiquei observando. Num instante todos a minha volta já
estavam longe e eu sozinha.
Minha
cabeça e meu corpo estavam anestesiados por causa do frio. A
sensação era estranha e boa ao mesmo tempo, pois ao menos assim não
havia dor. Faltava descobrir o que havia acontecido.
Comecei a
me mover, as pernas estavam pesadas, era como se para andar eu
tivesse que arrastar um caminhão junto. Olhei a minha volta e
nenhuma alma boa para ajudar.
Foi ai
que avistei um contorno em meio a chuva. Era alguém que trajava capa
e um chapéu, ambos escuros. Estava com as costas apoiadas numa
parede, uma das pernas escorando o corpo, braços cruzados, o topo da
cabeça encostado na parede e o chapéu cobrindo o rosto.
Aproximei
no meu ritmo lento. Não parecia ter me notado também. Engano meu.
Ao chegar perto, ele retirou o chapéu do rosto, mas o colocou muito
rápido, assim não pude ver a face por completo, apenas da ponta do
nariz para baixo. Continuava com a cabeça abaixada e não olhava em
minha direção. Talvez não tivesse mesmo me notado.
Acenei.
Estava perto dele, mas não muito. Queria falar, pedir ajuda,
informação, ou qualquer outra coisa. Porém, antes que eu pudesse
dizer algo a figura se moveu e virou o rosto para mim.
Naquele
momento eu gelei, sentia como se meu corpo estivesse sendo puxado ou
algo do tipo. Tive medo. Queria sair dali. Era como se ele estivesse
controlando cada parte de mim.
Quis
gritar, a voz não saiu. Para minha surpresa acho que ele ouviu algo,
pois sua voz soou em meus ouvidos. Era um som grave, marcante, nada
que eu já houvesse escutado antes.
“Ainda
terá um tempo, mas não muito. Não se acostume, pois farei a
gentileza de deixa-la por enquanto. Reúna suas forças e saia daqui,
vá em busca das suas respostas. Tente encontra-las se for capaz.”
Com uma
risada ele desapareceu pela entrada do beco ao seu lado. Novamente me
vi sozinha. Ele havia dito respostas. Será que eu cheguei a dizer
aquilo alto? Por que ele e aquela velha foram os únicos que falaram
comigo?
Eram
tantas perguntas. Virei as costas e reiniciei a caminhada. As pernas
parecia um pouco mais leves, mas as questões ainda atormentavam.
Para começo de conversa eu não sabia como eu havia ido parar ali,
outro ponto era o motivo para ter ido até aquele lugar e de onde eu
havia saído. Porém a questão que mais me assombrava era: quem
exatamente eu era?
Ótimo!
Não sei nem quem eu sou, quanto mais de onde vim!
Estava
literalmente perdida. E se eu fosse uma louca? Uma procurada
perigosa? Talvez tivesse cometido crimes... mas quem saberia me
responder?
Olhei
para os lados, a chuva ainda não havia parado. A sorte era que a
camisola não estava translucida apesar de estar colada. Não sabia
nem se aquilo era uma camisola mesmo. Como eu podia me lembrar de
coisas assim e me esquecer de quem eu era?
Avistei
um lojinha, um homem que vinha correndo com um jornal sobre a cabeça
entrou no lugar, aproveitei para segui-lo e adentrar o ambiente. Do
lado de dentro, um balcão e amontoados de livros em todos os cantos.
O homem passou a percorrer as estantes e verificar os livros, parecia
concentrado no que fazia. Como antes, ninguém me notava. Não havia
balconista. O sino da porta se moveu, nenhum som. Outra pessoa
entrou. Um homem de jaqueta escura e boné. Estava molhado e água
que escorria de suas roupas molhava o carpete do chão.
Olhei ao
meu redor. A minha volta o carpete estava seco, o que era estranho já
que eu estava tão encharcada quanto ele. Segui os rastros do chão e
nenhum dos molhados indicavam as marcas dos meus pés. Assustei com
um livro que caiu e virei em sua direção. Abaixei para pega-lo, mas
minha mão deve ter deslizado sobre a capa. Quando fui tentar outra
vez eu vi botas negras e levantei bem rápido.
“Ora,
ora, parece que ainda não foi atrás de suas respostas. Vamos. Não
tem o dia todo. Procure. Observe. Talvez precise de um choque de
consciência.”
Estava
paralisada no lugar. Como ele havia entrado ali? Ainda não havia
visto o seu rosto e no momento em que avancei para puxar aquele
maldito chapéu de cowboy ele se esquivou. Foi então que algo as
minhas costas me fez ficar alerta. Vi os lábios do homem de boné se
mexer, mas não podia ouvi-lo. Ele sacou uma arma e rendeu o homem do
jornal e uma balconista que eu não sabia quando havia chegado.
Estava
ali parada observando tudo. Ele não me via e eu estava tão próxima
quanto os outros dois reféns. Daquela distância era impossível não
ter me notado. Percebi uma reação precipitada da moça e um
disparo, o homem do jornal cambaleou e o som do tiro não ecoou em
meus ouvidos. De repente outro clarão. Uma dor me invadiu. Olhei
para baixo e vi que estava sangrando. Será que eu havia levado
aquele tiro?
Não. O
homem do jornal estava caído no chão, ele havia sido acertado e não
eu. Mas então por que eu estava sangrando? Toquei o ferimento e
percebi que não podia senti-lo.
Olhei
para frente e vi o cara de jaqueta sair correndo da loja. A mulher
estava tremendo e correu para perto do homem caído. Depois de algum
tempo eu notei que o rosto dele estava mudando e havia momentos em
que ele parecia me ver, pois apertava bem os olhos como se pudesse me
enxergar.
A moça
correu e pegou o telefone. Mais uma vez eu apenas vi os lábios se
moverem e nenhum som. Ela correu de novo para perto do homem. Foi
então que notei um brilho. Uma luz às minhas costas. Olhei para o
lado, percebi que a capa, bem como o chapéu estavam jogados. Virei
rápido e notei a mesma figura de antes, mas agora podia ver seus
olhos. Dois lindo olhos dourados, um homem envolto em luz e contornos
que lembravam asas enegrecidas.
Senti
algo estranho se mover em mim. Quis tocar o rosto dele, mas não
pude. Ele apontou para o homem caído as minhas costas e fez gestos
para me virar. Ainda não conseguia entender o motivo daquilo.
E sua voz
soou em minha mente, mas agora era mais grave e parecia acompanhada
por outras mil vozes. Ele disse:
“Veja.
Agora, lembre-se!”
Como se
um flash estivesse atravessado o meu cérebro eu senti o corpo pesar,
senti a dor me invadir, mas pude finalmente abrir os olhos e quando o
fiz, lembrei.
Aquele
homem, o do jornal, estava morrendo e eu sabia porque, mas não podia
acreditar. Corri até ele, tentei toca-lo.
“Ainda
não pode toca-lo. Ele ainda não está morto.”
Lágrimas
inundaram o meu rosto, senti uma angustia tão forte em mim, agora eu
entendia o que precisava lembrar. Eu o conhecia, conhecia aquele
homem e agora ele estava morrendo.
Pousei a
mão a centímetros do rosto dele, mas meus dedos não chegavam em
sua pele. Eu o amava, amava muito. Sabia que havíamos nos amado como
pessoas e apesar de parecer tudo tão distante, o meu amor ainda era
imenso. Ele estava de olhos fechados e eu chorava ajoelhada ao seu
lado.
“Não
pudemos evitar que isso ocorresse. Ele escolheu assim quando você
deixou o seu corpo. E é por causa disso que eu não a levei embora
assim que você atravessou. Ele a amou muito e foi esse amor que não
a permitiu se afastar deste mundo. Mas se você estiver longe, ele
poderá esquecer com o tempo.”
Minhas
lágrimas caiam e meu peito doía ao lembrar da vida que havíamos
tido juntos. De repente senti que o corpo dele estava se entregando.
Não! Não podia! Ele tinha que viver! Não podia ser assim, então
eu gritei, o som finalmente pode sair dos meus lábios e algo
aconteceu.
Eu o vi
abrir os olhos e foca-los diretamente em mim. Uma pequena lágrima
escorreu. Ele havia me visto. Sorri de emoção. Meu amor pôde me
ver. Eu te amo... reproduzi com os lábios e ele fez o mesmo.
Ainda não podia tocá-lo, o que demonstrava que ele estava vivo.
Não
queria que ele morresse, não podia. Eu o amava muito para vê-lo
morto. Virei-me para o ser às minhas costas e o encarei. Implorei
para que o deixasse viver. Ele acenou com a cabeça e pude ouvir sua
voz celestial:
“Ele
irá viver se assim o desejar, mas não poderá se lembrar de nada.
Não temos permissão para deixá-los lembrar. Você também não
poderá continuar aqui se quiser tê-lo vivo, pois assim ele poderá
seguir em frente.”
Meus
olhos estavam encharcados, mas meu amor era muito grande. Desejava
que ele vivesse. Então escolhi.
Minutos
depois, percebi os paramédicos entrarem no local e levarem o corpo
dele para dentro da ambulância. Estava do lado de fora enquanto
observava o carro se afastar com as luzes piscando e o barulho que as
sirenes provavelmente estavam fazendo.
Viva
meu amor, seja feliz.
Senti o
leve toque dos dedos luminosos em meu ombro. Em meu corpo uma
corrente de energia começou a atravessar e fui puxada pelo ser que
me envolveu em seus braços enquanto minhas ultimas lágrimas caiam
dos meus olhos.
by Katarina